Carros-jabuticaba, e o Brasil fica à parte do mundo

Não são apenas os motores de 1,0 litro: “aventureiros”,
flexíveis e picapes leves também estão perto da exceção

 

“Carro 1.000 é como jabuticaba, só existe no Brasil”, costumava dizer José Carlos Pinheiro Neto, quando era vice-presidente da General Motors no País, sobre os modelos com motor de 1,0 litro. Pinheiro defendia uma tributação mais equilibrada entre esses automóveis e os de cilindradas superiores sobretudo porque, sendo a opção pelos 1.000 cm³ praticamente exclusiva do Brasil, os motores dessa categoria não encontravam mercado para exportação. Como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) continua a favorecer essa classe, ela ainda responde por 40% dos carros vendidos.

Não há dúvida de que seja essa a maior participação dos 1,0-litro em qualquer mercado planeta afora, pois em outras regiões eles são exceção e não maioria. O único outro país com grande volume de vendas abaixo de 1.000 cm³ é o Japão, que criou benefícios para modelos de até 660 cm³ (os chamados kei jidosha ou carros K). Mesmo na Europa, com fatores como cidades estreitas, alto preço de combustível e restrições de emissão de gás carbônico (CO2), as cilindradas mais comuns em carros pequenos são mais altas, em geral entre 1,2 e 1,4 litro. Motor 1.000, só em alguns modelos urbanos — a não ser com turbocompressor, que muda tudo e permitiu seu uso até no grande Ford Mondeo, equivalente ao Fusion vendido aqui.

Como já escrevi mais de uma vez, discordo da definição do limite de 1,0 litro para o favorecimento fiscal. É uma cilindrada baixa demais (reforçando, sem considerar turbo) para obter potência e torque adequados a um carro familiar, ainda mais diante dos padrões atuais de conforto — uso de ar-condicionado, por exemplo — e segurança em colisões, que implicam aumento de peso. O fabricante pode “esgoelar” o motor para alcançar a faixa de 80 cv, como temos visto em vários casos, mas o comportamento em baixa rotação é sacrificado e o carro acaba se tornando desagradável de dirigir no uso urbano. Um 1,2 ou 1,4-litro com os mesmos 80 cv tem torque superior e se mostra mais competente como automóvel.

Onde o fabricante e o consumidor podem escolher uma cilindrada mais alta sem afetar a tributação, o 1.000 praticamente não tem chance, como se nota pelas opções oferecidas no exterior. O Dacia (Renault) Logan e o Ford Ka europeus, por exemplo, começam em 1,2 litro. Na vizinha Argentina o Mille é chamado de Uno Fire, pois tem motor de 1,25 litro, e modelos como novo Uno, Palio, Celta, Classic e Onix não têm versões abaixo de 1,4. Logan, Sandero e o Fiesta antigo (Rocam aqui, One lá) só vem como 1,6 e o Ka ainda oferece tal opção, que aqui foi extinta.

Mas não são apenas os motores de 1,0 litro que dão origem a “carros-jabuticaba” no Brasil. Assim como a fruta que quase só é encontrada por aqui (existe em mais alguns países das Américas Central e do Sul), nosso mercado tem outros tipos e categorias de automóveis que seria improvável você ver em outro lugar, pelo menos na quantidade e variedade de que dispomos. Veja alguns casos curiosos.

 

Lá fora, o preço do E85 não compensa seu menor rendimento em relação à gasolina — questão que hoje se repete com o álcool no Brasil

 

• Motores a álcool e flexível. Nossa facilidade em produzir álcool a partir da cana-de-açúcar foi decisiva para que surgissem aqui os primeiros carros de série movidos ao combustível vegetal, no fim da década de 1970, e que eles dominassem o mercado em poucos anos, até que a crise de abastecimento de 1989 abalasse a confiança dos brasileiros. Nenhum outro país fabricou carros a álcool em quantidade ou estabeleceu uma rede expressiva de postos desse combustível.

Já o motor flexível não foi criado aqui, mas nos Estados Unidos, onde já existia em 1991 uma versão do Ford Taurus. A diferença é que lá o álcool é vendido em mistura com 15% de gasolina, o chamado E85, o que garante a partida e o funcionamento a frio em regiões de inverno severo, mesmo sem a injeção de gasolina usada no Brasil (há pouco substituída em alguns modelos pelo preaquecimento do álcool). Alguns países europeus, como Suécia e Finlândia, também têm carros movidos a E85.

Contudo, em qualquer desses países os flexíveis estão longe de atingir o domínio que conseguiram no Brasil, onde são nove em cada 10 unidades fabricadas, assim como a rede de postos que vende E85 por lá é ínfima se comparada a nossa distribuição de álcool. E não há previsão de mudança desse cenário, pois o preço do E85 não compensa seu menor rendimento em relação à gasolina — questão que hoje se repete com o álcool na maior parte do Brasil, mas não parece abalar o crescimento dessa frota, balizado pelo menor IPI que o das versões a gasolina e pelo receio de perder mais na revenda.

• Picape derivada de automóvel. O conceito parece ter surgido nos EUA, que já faziam utilitários e pequenos caminhões com chassi de carros no começo do século passado. Nos anos 50 e 60 houve por lá modelos marcantes como Chevrolet El Camino e Ford Ranchero, seguidos pelo pequeno Dodge Rampage/Plymouth Scamp dos anos 80. A Europa teve opções como a VW Rabbit Pickup derivada do primeiro Golf, a 504 da Peugeot e a picape Morris Minor inglesa. A japonesa Subaru fez duas do tipo (BRAT e Baja); na Austrália ainda se fabricam as derivadas dos sedãs grandes Ford Falcon e Holden Commodore; e na África do Sul a Ford vendeu diversas gerações da Bantam (uma delas, similar à nossa Courier), a GM tem a Montana com o nome Utility, e a Fiat, a Strada feita por lá.

Mas é no Brasil que se vê a maior variedade nessa categoria, hoje com cinco modelos — além das três citadas temos Peugeot Hoggar e VW Saveiro. A pioneira foi a Fiat, com a derivada do 147 ainda nos anos 70, e na década seguinte o segmento se estendeu às outras “três grandes”. E por que essa fórmula bem-sucedida por aqui não tem aceitação expressiva em outros cantos do mundo?

Difícil responder, mas arrisco dois palpites. Primeiro, o transporte de carga em caçamba aberta não se aplica bem a qualquer país por fatores como o clima — na Europa é clara a preferência por furgões. Segundo, o uso desse tipo de veículo para o lazer tem um forte componente de marketing, de modismo — que no caso já dura mais de 30 anos —, e modismos são algo a que cada mercado responde de maneira diferente. Os EUA, que gostam muito de picapes, compram modelos bem maiores que os nossos e chamam Ranger e S10 de compactas.

 

 

Coisa de emergente

• Sedã pequeno. Neste caso as “jabuticabas” não são tão brasileiras assim, mas vale a citação. Aplicar um porta-malas saliente a um hatch compacto não é comum nos mercados mais desenvolvidos (EUA, Europa, Japão), mas se tornou uma receita de sucesso por aqui nos últimos 10 a 15 anos, da mesma forma que em alguns países asiáticos, na Argentina e no México. Um fenômeno não tão antigo: nos anos 80 e 90 o Voyage viveu à sombra do Gol, a ponto de a VW ter desistido de fazer o sedã na segunda geração.

As versões de três volumes do Polo e de duas gerações do Corsa foram desenvolvidas para o mercado brasileiro (embora tenham sido exportadas e, no caso do primeiro Corsa, produzida na China). Também ficaram restritos a países emergentes os sedãs Ford Fiesta nas duas gerações anteriores (apenas a mais nova chegou aos EUA, mas foi chinesa antes disso), Peugeot 206/207 (que surgiu na China antes daqui) e Renault Clio (que começou pela Turquia). E o Honda City não é oferecido em mercados desenvolvidos onde seu “irmão” Fit, que lhe cede a plataforma, é bem-sucedido.

E por que sedãs pequenos são relacionados a mercados emergentes? São países onde as famílias têm menos carros, muitas vezes um só, e grande parte delas não pode comprar um modelo médio ou grande. Essa categoria então se torna uma solução econômica para levar toda a bagagem nas viagens. Já nos países de vanguarda — que poderíamos chamar de ricos até outro dia — é mais comum a família ter um carro maior, um segundo veículo para viajar ou mesmo recorrer ao avião para esse fim. Há também um fator cultural: sedãs são vistos como modelos mais nobres em alguns países e não conseguem essa imagem em outros.

 

Há quem alegue robustez nas ruas acidentadas, mas os principais fatores para comprar um “aventureiro” parecem mesmo ser emocionais

 

• Versões “aventureiras”. Maior altura de rodagem, pneus maiores — de uso misto cidade/campo ou não —, um monte de apliques plásticos, talvez uma simulação de estribo ou um estepe pendurado junto à tampa traseira, atrapalhando o acesso ao compartimento de bagagem: está pronto um carro “aventureiro”, como se apelidaram as versões com aparência fora de estrada e, em alguns casos, certa aptidão para sair do asfalto e ir mais longe que um carro comum.

A moda estreou por aqui em 1999, com a Fiat Palio Adventure (houve adaptações à VW Parati nos anos 80, mas não de fábrica), e se espalhou pela marca mineira e por modelos de Citroën, Ford, Honda, Hyundai, Nissan, Peugeot, Renault e Volkswagen. Há quem justifique sua compra por uma suposta robustez nas ruas acidentadas de nossas cidades, mas os principais fatores parecem mesmo ser emocionais, como estar na moda e demonstrar (ou simular) um estilo de vida jovial, esportivo, de contato com a natureza.

Essas “jabuticabas” existem no exterior? Sim, mas em quantidade mínima. A VW parece ser a mais recorrente, já que oferece versões Cross para Up, Polo, Golf e Touran, e há mais alguns poucos casos como o da Renault Scénic XMOD. Não devemos incluir aqui os carros e peruas com tração integral e outras alterações expressivas para uso fora de estrada, como as Audis Allroad das linhas A4 e A6, Subaru Legacy Outback, VW Passat Variant Allrad, Volvo XC70 e, no passado, a linha AMC Eagle.

Por fim, um caso inverso, ou seja, algo que existe no mundo todo e não pode existir no Brasil: automóvel a diesel. Há países que não ligam para eles, como EUA, Japão e — por motivos óbvios — as nações do Oriente Médio com sua fartura de petróleo, mas esses econômicos motores são muito bem aceitos na maior parte da Europa e em outros mercados, como a Argentina. Tudo depende da proporção de preços entre gasolina e diesel: embora este tenha rendimento por litro muito mais alto, é preciso que o valor por litro seja competitivo; em caso contrário, o alto custo do motor torna sua opção inviável.

Já aqui, na terra das jabuticabas, a tributação sobre o diesel é reduzida para reduzir o impacto nos custos do transporte de carga e do transporte público de passageiros. Assim, por força de lei, só se podem abastecer com diesel veículos como caminhões, ônibus, picapes e jipes com tração 4×4. E, claro, os sofisticados utilitários esporte que se aproveitam das brechas da legislação para levar por aí seus abonados proprietários, enquanto os comuns mortais pagam impostos bem mais pesados na gasolina e no álcool… Coisas de Brasil.

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