Rodovias perfeitas com velocidade livre, ruas impecáveis
e trânsito ordeiro fazem o cenário ideal para os entusiastas
Tenho por hábito aproveitar as viagens ao exterior para observar aspectos do país no que se refere ao automóvel: os carros em si, os motoristas, as soluções de trânsito nas ruas e rodovias. E não foi diferente na recente ida à Alemanha a convite da Volkswagen para cobrir o Salão de Frankfurt e o lançamento do novo Golf, além de visitar a Autostadt. Obtive impressões que gostaria de compartilhar com os leitores, tanto para trazer algo novo a quem nunca esteve lá quanto para receber comentários de quem conheceu o país por mais tempo que eu.
As primeiras boas impressões que um brasileiro tem na Alemanha são, sem dúvida, de disciplina e organização. Aquele é um povo desenvolvido e amante da técnica e da precisão, o que se reflete em tudo o que faz e em como o faz. Na capital, Berlim, e em Frankfurt, centro econômico do país, notam-se o tráfego ordeiro, a sinalização impecável, a limpeza. É certo que Berlim agrada bem mais: apesar da população quatro vezes maior que a de Frankfurt, é repleta de parques e tem um charme de cidade média inesperado de uma capital federal.
Mesmo ao rodar de ônibus executivo (e que ônibus: um Man com bancos melhores que os de muitos automóveis, cintos retráteis e rodar silencioso), percebe-se como as ruas são impecáveis. Lombadas, não encontrei nenhuma; buracos, idem; nem mesmo valetas existem para incomodar. Desníveis parecem ser combatidos a todo custo — até as calçadas são baixas em relação à via. Em algumas avenidas estaciona-se a 45 graus no que seria o canteiro central, mas ele está ao nível do asfalto, sem guias. Basta a sinalização no piso.
No trânsito lento antes de uma obra, a faixa da direita ficou vazia: nenhum espertinho apareceu tentando cortar à frente dos outros
Quando eu avaliava o novo Golf, vi uma placa indicativa de ondulações e pensei: “Lá vem minha primeira lombada alemã”. Mas não veio. De interrogação na cabeça, vi outra placa quilômetros adiante e resolvi ficar atento ao piso. Encontrei as ondulações: eram emendas de início e fim de uma ponte, mais suaves que qualquer similar do Brasil. E essas já justificam placa de alerta para eles…
Em uma estrada secundária, chegando ao centro de treinamento do ADAC (maior clube de motoristas da Europa), confirmei o que o amigo Bob Sharp havia contado em uma coluna anos atrás. O asfalto estava todo remendado, mesclando diferentes tons, mas a superfície era perfeita, de transição imperceptível entre um reparo e outro. E para rodar nessas condições o alemão raramente paga pedágio.
Disciplina no tráfego
A organização aparece também nas regras de trânsito. Se uma via de três faixas permite virar à esquerda, à direita ou seguir em frente, cada faixa é sinalizada com uma só direção (o carro da esquerda não pode seguir em frente, por exemplo), o que aumenta a fluidez e evita acidentes. Claro que alguém pode mudar de ideia ou perceber que sua saída está passando, mas para isso o alemão é pouco tolerante — eu mesmo tomei uma buzinada por ter mudado de faixa “à brasileira”, já próximo da saída da via.
Surpreendentes mesmo são as conversões à esquerda. Em Berlim há avenidas em que o mesmo cruzamento permite tal conversão para ambos os sentidos de direção: os carros que vêm em direções opostas quase se encontram ao virar, parando em faixas demarcadas no solo (nada de guias) para aguardar uma brecha do tráfego contrário, sem haver tempo específico para isso no semáforo. E funciona! Fico imaginando quantos acidentes por hora teríamos em qualquer cidade brasileira que tentasse copiar a solução…
Outra boa surpresa tive em uma via de três faixas na mesma cidade. O trânsito estava bem lento e notei a faixa da direita vazia. Como bom brasileiro, mudei para ela — até perceber que, um pouco adiante, havia obras e aquela faixa seria impedida. Voltei à esquerda, algo envergonhado sob severos olhos germânicos, e ali esperei o tráfego andar. Pois bem: naquele minuto ou dois de anda e para até o estreitamento, nenhum espertinho apareceu na faixa da direita tentando cortar à frente dos outros.
Obras são algo que a Alemanha tem em profusão, apesar da crise que assola a Europa há anos, e todas são muito bem sinalizadas. Se o tráfego é desviado para o acostamento da rodovia, não existe improviso: pintam-se faixas provisórias no solo, a serem encobertas quando a obra for concluída.
Que o pedestre tem prioridade, eu já sabia. A novidade foi como o semáforo é programado: em uma conversão à esquerda, o sinal pisca em amarelo para os veículos e fica verde para os pedestres. Nesse caso o motorista deve parar, seguindo apenas se não houver pedestre tencionando atravessar. De resto, a frenagem intensa de um táxi a meu lado quando o semáforo fechou revela que cruzar o vermelho por lá é coisa bem séria (se fechado há mais de um segundo, a multa duplica e suspende-se a habilitação por um mês). Antes do sinal verde vem sempre o amarelo, medida de bom-senso que não funciona em países onde “aproveitar o finzinho do amarelo” é usual.
A avaliação do Golf permitiu-nos dirigir em Autobahn, o tipo de rodovia famoso no mundo todo por não ter limite de velocidade, mas apenas a sugestão de 130 km/h. Na verdade, trechos sem limite são mais raros hoje, pois fatores como trânsito denso e obras levam a estabelecer uma velocidade máxima indicada em painéis eletrônicos. Quando não há limite anda-se realmente muito rápido, com carros passando a mais de 200 km/h com frequência.
Construção e manutenção irrepreensíveis, associadas ao alto grau de educação e treinamento do motorista alemão, garantem a tranquilidade de andar a essa faixa de velocidade. Mantivemos mais de 220 no Golf GTI por algum tempo sem qualquer sensação de estar excedendo os limites de segurança da via, como aconteceria no Brasil. Nada de vibrações, ondulações ou curvas mal calculadas; nada de motoristas fechando a frente sem noção de nossa aproximação. A única mancha ao cenário perfeito foi de alguns poucos que insistiram em se manter à nossa frente em menor velocidade, sendo as regras claras de que a faixa à esquerda se limita à ultrapassagem.
Não que se rode sempre rápido na Alemanha; pelo contrário. Nas cidades vigora o limite de 50 km/h e há vários pontos de 30 km/h, como ao atravessar vilarejos e trechos com muitos pedestres. As multas crescem a cada 10 km/h de excesso e, se flagrado mais de 31 km/h acima do limite urbano, o motorista paga € 160 e tem a habilitação suspensa por um mês. Um excesso maior que 70 km/h significa € 680 e três meses sem o Führerschein.
Para obter sua habilitação, o motorista alemão passa por um aprendizado bastante extenso: mínimo de 225 minutos e 50 quilômetros por sessão em rodovias, de 135 minutos em Autobahn (com 45 minutos ou mais por sessão) e de 90 minutos à noite ou no crepúsculo, sendo metade em rodovia. O exame escrito é severo e, apesar do nível que se espera dos candidatos, 30% são reprovados.
Com a Führerschein em mãos, é melhor conhecer a fundo e respeitar as normas. Em uma Autobahn é proibido parar; se o carro quebrar, o triângulo deve ser colocado a 200 metros de distância. A placa com uma criança chutando bola indica área residencial, na qual o motorista deve parar para pedestres e rodar a no máximo 7 km/h. Se um ônibus para, tanto os carros atrás dele quanto os do sentido oposto da via devem se mover muito devagar, no chamado Schrittempo.
Dirigir em vias cobertas de neve só é permitido com pneus de inverno; ser flagrado com pneus convencionais dá multa e, se houver acidente, exime a seguradora da cobertura. Evadir-se após um acidente com vítima ou graves danos materiais pode levar à prisão, assim como não pagar multas, mesmo que seja por uma infração menor como estacionar em local proibido.
Supercarros em qualquer lugar
E os carros no cotidiano alemão, como são? Na frota das cidades que visitei predominam veículos de poucos anos, com raras aparições de modelos dos anos 90 — e alguns interessantes antigos em ótimo estado, como Mercedes SL, BMW 3.0 CS e Série 6 dos anos 60 e 70, às vezes estacionados na rua em dia útil.
Carros em mau estado, não vi nenhum: no máximo, alguns reparados com capô ou para-lama usado de outra cor. A Alemanha tem inspeções rígidas que impedem a circulação de veículos inseguros, pois o exame determina que tudo deve funcionar corretamente, mesmo que não seja essencial à segurança — nem o alinhamento de rodas escapa. Além disso, os impostos de propriedade aumentam com a idade do carro, em vez de diminuir como o IPVA daqui, de forma que manter um modelo de 30 anos se torna um capricho oneroso e aumenta a tendência a substituir o velho pelo novo.
Em Berlim, uma atração a cada minuto: Bentley Continental GT, Ferrari 458 Italia, Maserati Quattroporte, Rolls-Royce Ghost, um Wiesmann
Em relação ao nível dos automóveis, chama a atenção a frequência com que se veem marcas e modelos que aqui são muito caros e raros. Em alguns minutos em Frankfurt vi um Ferrari FF, dois Range Rovers recentes no mesmo semáforo — o tradicional, não o “barato” Evoque —, dois Porsches estacionados juntos, um Aston Martin. Em Berlim, diante do hotel, era uma atração a cada minuto: Bentley Continental GT, BMW Série 7 Alpina, Ferrari 458 Italia, Maserati Quattroporte, Rolls-Royce Ghost, um esportivo Wiesmann… A impressão é de que o alemão ter um Série 7 ou Mercedes Classe S é como um brasileiro chegar a um Azera ou Fusion: nada de outro mundo.
Há também grande número de conversíveis, algo como 5% da frota circulante nesse fim de verão europeu. E todos rodam abertos, curtindo o sol que é raro por lá — mesmo um BMW ou Porsche em meio ao tráfego lento, sem a insegurança que vivemos aqui. Em contraste, o que se vê de Smart Fortwo não é brincadeira. Mas o pequeno francês é quase exceção, pois carros compactos são bem mais raros no tráfego de Berlim ou de Frankfurt que no das grandes cidades daqui.
O que se vê demais por lá é perua, de todas as marcas e tamanhos — é o país da Europa, e talvez do mundo, que mais compra esse tipo de carro. A maioria da frota é mesmo nacional (quem precisa de importados com o que eles fabricam lá?), com alguma relevância de franceses, pouca de italianos e norte-americanos e quase nada de japoneses. Utilitários esporte são comuns em Frankfurt, talvez pelo percentual de estrangeiros, mas escassos em Berlim. Sobre cores, há muitos azuis, mas no restante os “50 tons de cinza” que conhecemos bem se repetem.
E os táxis, é verdade que são todos Mercedes-Benz Classe E? Em grande parte, sim: em ambas as cidades, sedãs e peruas desse modelo são maioria na frota, com seu característico tom bege claro, apesar de haver muitas minivans VW Touran e peruas hibridas Toyota Prius V. Vi diversos táxis Mercedes do modelo 2013, mas também vários de 10 anos ou mais, sinal de que a obsolescência por lá é bem mais lenta que, por exemplo, em São Paulo (natural, aliás, pela qualidade dos carros e das vias). Em geral o Classe E é usado para esse fim em versão simples, até mesmo com rodas de aço, e com motor a diesel.
Diesel este que domina o mercado também entre carros particulares nos segmentos superiores — entre 80% e 90% de participação em vários sedãs de luxo, perto de 100% em utilitários esporte e 60% em alguns médios, embora a média no país fique ao redor de 50%. Não que os alemães não gostem de motores a gasolina: o problema é seu custo, da ordem de 1,60 Euro (R$ 4,80) por litro, contra 1,45 Euro (R$ 4,35) do diesel, que rende bem mais quilômetros por litro. A gasolina pode conter 10% de álcool ou ser pura, esta indicada para motores antigos, um respeito ao consumidor e contribuinte.
Motos são muito raras na Alemanha, em parte pelo inverno rigoroso (podem ser licenciadas por apenas alguns meses por esse motivo) e em parte porque devem rodar atrás dos carros, sem usar o “corredor”. Há um pouco de scooters e raras motos de alta cilindrada. Por outro lado, mesmo na grande Berlim há enorme número de bicicletas, que suprem tanto os serviços feitos aqui com motos quanto o deslocamento pessoal. Com muita praticidade, aliás: a cidade é bem plana e os trens contam com vagões nos quais se entra com a bicicleta.
Seria a Alemanha o paraíso automotivo na Terra? Se não for, está perto disso. Embora sem carros tão baratos quanto nos Estados Unidos ou a gasolina quase de graça da Venezuela, é um país organizado, onde os governos respeitam o dinheiro do contribuinte — e, de quebra, o único lugar no mundo onde se pode buscar a velocidade máxima de qualquer supercarro sem o risco de ir parar na cadeia.
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