Automóveis que dirigem por conta própria resolverão uma série de
problemas, mas criarão outros — e nos privarão de um prazer
No mês passado, meu amigo Paulo Keller e eu descíamos — cada um em um carro, pois havíamos subido em horários diferentes — a serra da SP-123, de Campos do Jordão, SP, para o Vale do Paraíba. O ritmo fluía bem na manhã de sábado até que o tráfego passou a se arrastar a 40, 50 km/h. À nossa frente, a fila era tão grande que ultrapassar alguns carros nas raras oportunidades seria inútil. Encaramos a monótona descida até o trecho plano, quando enfim todos os motoristas conseguiram deixar para trás um VW Fox cuja condutora, de ar inexperiente, quase se debruçava sobre o volante.
“Não vejo a hora de carros autônomos dominarem as ruas”, brinquei com Paulo ao pararmos para almoçar, mas ele logo acabou com minhas esperanças: “Não adiantaria nada. Percebeu as placas de 40 e 60 km/h em vários trechos? O autônomo andaria conforme a sinalização e causaria o mesmo congestionamento”. Ele tem razão.
Atropelar o bebê, bater no caminhão, colidir com outro obstáculo: e o sistema autônomo, o que faria nessa situação?
Mas a sinalização com limites de velocidade irreais — alguns fiscalizados e fontes de enorme arrecadação, outros felizmente não — está longe de ser o único obstáculo para os automóveis capazes de dirigir por si mesmos, área que tem sido objeto de extensas pesquisas por fabricantes e sua rede de fornecedores.
Computadores podem ser ensinados a realizar tarefas com rapidez, eficiência e repetibilidade espantosas, até mesmo a vencer um campeão mundial de xadrez, como aconteceu em 1997 na histórica partida entre o Deep Blue da IBM e o russo Garry Kasparov em Nova York. No entanto, conduzir um veículo no mundo real envolve decisões que nem mesmo o mais potente e bem programado “cérebro eletrônico” consegue tomar.
Tempos atrás li uma reportagem sobre um VW Passat com sistema autônomo desenvolvido pela Continental alemã (talvez mais conhecida pelos pneus, mas grande fornecedora também de sistemas eletrônicos para a indústria). Apesar de demonstrar as capacidades do sistema de monitorar o tráfego à frente e ao redor, ajustar sua velocidade às condições, frear e até mesmo desviar de um obstáculo sem intervenção do motorista, a matéria deixava uma questão no ar.
Imagine que o carro estivesse em rodovia de mão dupla e pista única. À frente, um pedestre levando um carrinho de bebê decide atravessar a pista de forma tão repentina que impede a frenagem completa. Não se pode desviar para o acostamento por algum motivo, como um barranco ou grupo de pessoas caminhando. Resta a opção de sair pela contramão, mas o sistema detecta um caminhão se aproximando em sentido oposto. Mesmo que sujeito a erros de julgamento, o cérebro humano faria sua escolha entre as alternativas — atropelar o bebê, bater no caminhão, sair pela direita e colidir com as pessoas ou outro obstáculo. E o sistema autônomo, o que faria?
Devolver o comando ao motorista com o sistema em alerta, entregando-lhe a difícil decisão, seria um caminho. Mas a proposta desses dispositivos é justamente dispensar o condutor, permitindo-lhe descansar, entreter-se como preferir (alguns já fazem isso sem carros autônomos…) ou mesmo, em estágio mais avançado, estar ausente do veículo. Não é razoável exigir que ele reassuma a direção em uma emergência, estando muitas vezes em posição inadequada ou sem condições físicas imediatas para isso. Portanto, a complexa questão precisará ser resolvida.
Esse desafio leva a outro, a das responsabilidades civil e penal por eventuais acidentes. No caso descrito acima, o motorista poderia ser processado por atropelar o pedestre, ou talvez acionasse na Justiça o fabricante do carro que o fez bater no barranco — isso se não terminasse seus dias sob o caminhão. Quem paga essa conta?
O ano decisivo: 2020
Em que pese os obstáculos e a necessidade de rever a legislação de cada país, os projetos de carros autônomos prosseguem. A Mercedes-Benz anuncia que em 2016 já terá um Autobahn Pilot, sistema de condução automática para as autoestrada alemãs, capaz de efetuar ultrapassagens. O ano decisivo para a nova tecnologia, porém, é 2020 para diversas marcas.
É quando os fabricantes Audi, BMW, General Motors, Mercedes, Nissan, Renault e Tesla, além da gigante da tecnologia Google, pretendem colocar no mercado automóveis ou sistemas capazes de dirigir por conta própria, ao menos parte do tempo. A Volvo anuncia para o mesmo ano carros “isentos de acidentes”, aptos a evitar todo tipo de colisão por seus meios, e a Google espera contornar até lá todos os problemas encontrados hoje para o carro autônomo.
Motoristas com necessidades especiais ou qualquer dificuldade circularão sem restrições — até os que gostam de beber e pegar o carro
Quando isso de fato acontecer, as vantagens serão claras. A maior delas será justamente a segurança, por evitar colisões causadas por imprudência ou imperícia do motorista — em uma fase mais distante, na qual os acidentes de trânsito seriam virtualmente eliminados, os carros poderiam ser projetados de modo muito mais leve e eficiente. Com computadores de reações mais rápidas que as humanas, as distâncias longitudinal e lateral entre os veículos serão bem menores, abrindo espaço para mais carros nas ruas e rodovias.
Motoristas com necessidades especiais ou qualquer tipo de dificuldade, ainda que temporária, poderão circular com um veículo autônomo sem restrições (até os que gostam de beber e pegar o carro). Dificuldades de estacionamento serão coisa do passado, e não só porque os carros cuidarão das manobras sozinhos, como alguns já fazem hoje: será possível desembarcar no local desejado e encarregar o automóvel de seguir até o estacionamento apropriado, retornando quando for preciso. Vagas menores, sem risco de colisões, tornarão os espaços ainda mais eficientes.
Para alguns, tudo isso aumentará a eficiência do transporte pessoal e deixará os carros mais integrados aos sistemas públicos — será bem mais prático, por exemplo, compartilhar um veículo mediante locação nas grandes cidades. Para outros, o fato de mais pessoas terem possibilidade de “dirigir” levará a um aumento substancial da frota, o que criaria novos problemas.
E para nós, entusiastas da direção, será um mundo diferente e mais chato. Há quem preveja que um dia os carros tradicionais — dirigidos por humanos — passarão a ser desfrutados apenas em locais fechados, mais ou menos como se fazem com cavalos desde que as carroças de tração animal se escassearam das ruas. Pode ser.
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