Nem todas as boas soluções são aceitas de início, pela quebra de paradigmas ou receio de problemas
Muitos ainda se lembram dos comentários no mercado quando a Fiat Toro foi lançada, em 2016. Dizia-se que picape com estrutura monobloco não poderia ter grande capacidade de carga (uma tonelada nas versões a diesel), que a tração integral sob demanda e a falta de reduzida a tornariam inservível no uso rural, ou mesmo que a suspensão traseira independente não seria adequada a sua finalidade. O tempo mostrou que nenhuma dessas limitações era tão grave, e mais: que essas características consistiam em algumas de suas vantagens sobre a técnica tradicional de fazer picape, ao menos para grande parte dos compradores e das utilizações.

A primeira constatação de que as críticas eram infundadas veio do sucesso de público: hoje a Toro é a segunda picape mais vendida no Brasil, atrás apenas da “irmã” menor e mais barata Strada. A segunda, porém, é mais recente: como a revista Automobile Magazine noticiou, a Ford planeja lançar até 2022 nos Estados Unidos uma picape projetada nos mesmos moldes da Toro, provavelmente sobre a plataforma do novo Focus, ou seja, monobloco, com suspensão traseira independente e tração dianteira ou integral.
Não seria, é verdade, a primeira nesse padrão por lá: foi assim que a Honda criou a Ridgeline, em 2004, hoje na segunda geração — curiosamente, um modelo de pouca aceitação pelos norte-americanos. Contudo, como fabricante da picape (Série F) que é o “carro” mais vendido dos EUA desde 1986, o que se espera da Ford é que conheça em profundidade os anseios desse público e que acerte em cheio ao buscar uma fórmula alternativa, que vem dando muito certo aqui abaixo do Equador.
Mas não é da Toro — ou apenas dela — que venho falar neste Editorial, e sim de propostas e soluções que chegam ao mercado e provocam controvérsia, para serem aceitas alguns (ou muitos) anos mais tarde. Primazias que podem ter custado caro aos pioneiros, mas se consagraram com o tempo.
A Volkswagen pagou o preço do pioneirismo: com teto solar de fábrica, o Fusca recebeu o apelido Cornowagen, um carro para maridos traídos
Foi assim com a tração dianteira, que está em nossos carros desde o começo da indústria, em 1956, com a perua DKW-Vemag Universal. Uma das primeiras marcas europeias a colocar as rodas da frente para mover o carro, a DKW enfrentou rejeição de muitos por aqui, pois os motoristas estavam acostumados às reações da tração traseira. Um de seus anúncios, já na fase em que ela se chamava Vemaguet, sugeria que “esta camioneta não tem medo de curvas” e aplicava o princípio da carroça, em que as rodas são puxadas e não empurradas pelo cavalo.

O aspecto mais crítico da tração dianteira eram subidas de baixa aderência, como de terra ou paralelepípedos, pois os pneus tendiam a derrapar à medida que o peso se deslocava para a traseira. Conta o colunista Luiz Alberto Melchert que a concorrente Volkswagen explorou a seu favor esse inconveniente, ao veicular comerciais de TV em que o Fusca vencia rampas de 39% de inclinação em São Paulo, SP. Com a evolução dos pneus e a chegada das juntas homocinéticas, a tração na frente ganhou espaço e hoje reina absoluta.
A mesma Volkswagen pagaria seu preço por um pioneirismo: o primeiro teto solar de fábrica em carro nacional, opção para o Fusca em 1965. O problema não estava na qualidade do teto de aço Golde alemão, mas na imagem de “carro para marido traído” que se espalhou, a ponto de surgir o apelido Cornowagen. O item logo saiu do catálogo e a mancha durou tanto que só em 1979 teríamos novo carro com teto solar, dessa vez de vidro e com controle elétrico, o Dodge Magnum. Depois de ganhar apelo no mercado de acessórios, o teto consagrou-se de vez com o Ford Escort XR3 de 1983, primeiro de fábrica com persiana para evitar os raios solares.
Pouco depois do “Fusca de corno”, com o Ford Corcel de 1968 surgia outra novidade polêmica: o sistema de arrefecimento selado, em que o líquido em expansão era armazenado em um tanque de vidro para depois retornar ao radiador, a fim de evitar sua perda para a atmosfera e diminuir a reposição de água. Muitos receavam problemas com a quebra do tanque, o que se resolveu com a troca do vidro por plástico. A ideia, afinal, era tão boa que se alastrou por toda a indústria — até mesmo a Volkswagen, até ali tão afeita ao arrefecimento a ar, a adotava em 1974 no Passat.
De ventilador a quebra-vento
Passat este que também trouxe inovações controversas, como o ventilador elétrico para o radiador. O usual na época era o ventilador ligado ao motor por uma correia, que consumia mais energia e gerava fluxo de ar quando não necessário, como na fase de aquecimento do motor, fazendo a válvula termostática operar mais tempo fechada do que precisaria — questões que levaram mais tarde ao emprego de uma embreagem eletromagnética. O acionamento elétrico, ativado apenas acima da temperatura ideal, resolvia ambas as questões, mas enfrentou o preconceito de quem temia fundir o motor por causa de um simples fusível queimado.

Outro pioneirismo do Passat foi adotar pneus radiais de série em sua categoria. Embora usados desde 1960 no FNM 2000 (depois JK), ainda eram raros: o tipo diagonal predominava. Com carcaça mais rígida, associada a uma suspensão firme que mais combinava com sua Alemanha de origem, os radiais desse Volkswagen levaram a críticas. Muitos proprietários queriam trocá-los pelos diagonais para melhorar o conforto — o que até a fábrica estudou, mas não fez —, em que pese as vantagens dos radiais em estabilidade e durabilidade.
Houve também itens que incomodaram não pela presença, mas pela ausência, como o quebra-vento. O Chevrolet Chevette de 1973 foi nosso primeiro carro de grande volume a eliminá-lo, seguido pelo Ford Maverick. Foram criticados: no calor tropical, a janelinha móvel era bem-vinda para forçar a ventilação na cabine, mesmo que causasse ruídos, prejuízo aerodinâmico e vulnerabilidade a arrombamento. Levou 10 anos para a GM aceitar recolocá-la… Justo quando outros carros, como o Monza quatro-portas da mesma marca, o Ford Escort e o Fiat Uno, começavam a empurrar o quebra-vento para a extinção. O Volkswagen Santana bem que insistiu em mantê-lo, mas o descartaria em 1998.
O quebra-vento fez falta no Chevette e no Maverick: no calor tropical, era bem-vindo para a ventilação, apesar dos ruídos e do prejuízo aerodinâmico
Com o Uno, em 1984, veio outro preconceito: apelidaram-no de “botinha ortopédica” pelo formato curto e alto, que aproveitava melhor o espaço pela posição mais ereta dos ocupantes. Da rejeição ao sucesso levou alguns anos, mas o pequeno Fiat caiu tanto no gosto popular que ficou em produção por 29 anos na mesma geração, além de ensinar à concorrência como oferecer bom espaço e ótima visibilidade em um carro de 3,6 metros de comprimento.

Da Fiat vieram também propostas inovadoras como a Palio Adventure e a Strada de cabine estendida, a primeira do gênero em picape leve, em 1999. “Para que serve um carro com jeito fora de estrada e tração apenas dianteira?”, desafiaram os críticos. Ora, para enfrentar os obstáculos do dia a dia urbano, ir a um sítio ou praia e encarar muitas situações que fazem atolar as picapes de tração traseira. Quanto ao espaço adicional da Strada, por menos útil que parecesse a alguns (pois não havia bancos ou cintos para levar passageiros ali), logo se mostrou conveniente e fez dessa uma opção muito apreciada.
Nove anos mais tarde, outra primazia da Strada em sua classe: a cabine dupla. Para os detratores, não era boa como picape nem como carro de passageiros: “Melhor comprar uma Strada simples ou uma Palio Weekend”. Falaram bem: comprar uma ou outra, ou seja, limitar-se a uma aplicação, a menos que se pagasse por dois carros. Já a picape dupla conseguia atender razoavelmente a ambas as tarefas ao preço de um carro só. A quantidade delas pelas ruas comprova que a Fiat acertou.
Dessa lista poderiam constar motores turbo, quatro válvulas por cilindro, injeção eletrônica, carros de quatro portas, ar-condicionado, direção assistida e transmissão automática, entre outros, mas todos foram abordados em Editoriais de agosto de 2017, setembro de 2016 e abril de 2014.
Como vimos, nem todas as boas ideias recebem a aceitação esperada logo de início, seja pela quebra de paradigmas que sempre incomoda a alguns, seja pelo receio de complicar a manutenção ou aumentar o risco de problemas. Mas, se a proposta é realmente válida, o tempo se encarrega de lhe dar o merecido reconhecimento.
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