Minha convivência com uma caixa automatizada tem sido suave nas trocas — menos nas subidas e descidas
Posso falar com muita propriedade, pois sou o feliz futuro ex-proprietário de um carro com caixa automatizada. Não, você não leu errado: futuro ex. Muito em breve meu amado automatizado, que faz companhia há quatro anos e meio, dará lugar a outro carro, ainda sem pedal de embreagem. Com conversor de torque, é obvio.
Comecei a cogitar aposentar o pé esquerdo depois da segunda crise aguda de lombalgia, causada pelo movimento incessante da perna pressionando a embreagem, aliado a dias inteiros plantado na cadeira de frente ao computador. Temia tornar-me um insensível aos prazeres do volante. Li a vida inteira nas revistas que o grande barato do dirigir era o cambiar das marchas. Meu pai dizia que “nada substitui seu controle sobre o carro”. Afinal, se você perder o freio descendo uma serra, “ter o controle rápido do câmbio evita um acidente”.
A Magnetti Marelli forneceria à Fiat um mecanismo automatizador apelidado de DFN, do italiano dolce far niente — uma ode ao ócio, na tradução, “doce fazer nada”
Precisei frear um carro, certa feita, metendo à força uma primeira quando reparei o freio perigosamente sem resposta depois de uma tromba d’água, em uma estradinha. Uma bolsa inflável aliada ao cinto já bastaria para manter o nariz mais ou menos a salvo, caso perdesse o controle e esborrachasse a frente em algum lugar. Pensei como teria agido se estivesse a bordo de um automático sem aletas no volante, daqueles que dirigimos por anos sem fazer uma troca manual sequer. Quantos segundos levaria para descobrir como passar a alavanca ao modo manual e ordenar a redução?
Minha história é a mesmíssima de todo mundo que compra um automatizado monoembreagem. Morava de um lado da cidade enquanto meu emprego era no lado diametralmente oposto. Poucos quilômetros que levavam, no mínimo, uma hora e dez minutos para serem vencidos. Dezenas de semáforos, carros, carros e mais carros, valetas, ambulâncias berrando, motocicletas com suas buzininhas agudas a infernizar. Todo santo dia, ida e volta. Raramente engatava uma terceira. Rotina insuportável, que torna a convivência com o carro um verdadeiro martírio.
Em 2007 vi numa coluna de segredos automotivos de uma dessas revistas a foto da finada Fiat Idea, camuflada, que em seu interior trazia uma alavanca misteriosa no lugar da alavanca de caixa manual. Os jornalistas já apuravam que a Magnetti Marelli forneceria um mecanismo automatizador apelidado de DFN, do italiano dolce far niente — expressão comum na Itália como uma ode ao ócio, na tradução, “doce fazer nada”. Equiparia veículos da marca italiana no Brasil e na Europa, como de fato ocorreu. Por aqui, estreou no Stilo em 2008 sob o nome Dualogic. Depois foi estendido a quase toda a gama. A mesma Magnetti Marelli forneceu à Volkswagen o equipamento, apelidado de I-Motion, usado com primazia no Polo da geração anterior e estendido a outros carros como Gol e Fox.
Doce fazer nada
Quando comprei meu automatizado, em 2013, não havia tantas opções com conversor de torque à venda no segmento dos compactos, o meu alvo. O Hyundai HB20, com um automático autêntico, mas de apenas quatro marchas, estava com o preço nas alturas. O Ford Fiesta recém-nacionalizado prometia experiência semelhante com seu sistema de dupla embreagem, inédito até então no segmento por aqui, mas ainda não estava para meu bolso. As avaliações da imprensa eram promissoras, embora os problemas enfrentados pela caixa Powershift nos anos seguintes me tenham dado alívio por não ter comprado um.
Os automatizados estavam mais consolidados como uma boa opção para me livrar do pedal esquerdo e a Fiat acabara de lançar uma segunda geração do seu, o tal Dualogic Plus. As resenhas eram boas, parecia que os engenheiros conseguiam atribuir ótima evolução a uma tecnologia que, passo a passo, avançava.
Tirei meu Punto Essence equipado com o Dualogic Plus, nos últimos dias de 2013, zerinho. E adorei o câmbio. Suave nas trocas, surpreendeu-me. Passei a achar que toda aquela pegação de pé com os automatizados era pura implicância da imprensa. Justiça seja feita: o sistema demonstrou-se robusto. Jamais apresentou qualquer porém. Nesse tempo todo, o que esse carro fez foi ligar todas as manhãs e funcionar sem reclamar. Aliviou-me barbaridade de todo o tráfego pesado, sem trancos nem trepidações.
A catapulta para frente só vem a 4 mil rpm — e quando você começa a sentir o puxão, lá vai o robô e corta o barato, passando a uma marcha adiante
A palavra “tranco” não é a que melhor descreve o momento da troca de marcha, pelo menos não no meu caso. A melhor palavra seria de um instrumento mais, digamos, medieval: catapulta. E acredite: na minha modesta opinião, o vilão nessa história é o motor, não a transmissão. Com motores que entregam torque de forma não muito linear, como é o caso do E-Torq de 1,6 litro do meu Punto, a sensação é fraqueza no dia a dia, acompanhado de uma catapulta para frente quando o conta-giros se aproxima das 4 mil rpm.
Enfim, quando você começa a sentir o puxão, lá vai o robô e corta o barato, passando a uma marcha adiante. A cada troca suave e sem trancos, você é catapultado para frente e para trás. Parece-me que essa tecnologia cai melhor em carros mais leves, com menor massa inercial, e com motores que entregam força de forma mais uniforme nas rotações mais baixas. Talvez por isso os elogios à combinação feita no Mobi.
Há apenas duas ocasiões em que o motorista está sujeito a um tranco, de fato. Uma nas subidas íngremes, como numa rampa de garagem: se o motor perder força em primeira e precisar começar do zero, meu amigo, aguente. O acopla-desacopla é um tormento. Há também um grave buraco de programação do Dualogic. É assim: se você coloca o carro em movimento em uma descida mais íngreme, com o pé no freio de leve, o sistema deixa a embreagem desacoplada, mas se esquece de sincronizar a marcha à velocidade. Resumindo, a velocidade vai subindo e o danado continua em primeira! Quando você solta o freio, pumba!, ele acopla e vem aquele tranco que só uma primeira a 40 por hora pode dar…
A vida com um automatizado é doce, também. É divertido sentir o punta-tacco virtual quando o sistema reduz marchas, em qualquer velocidade. Usar as aletas no volante é igualmente prazeroso. Andar com calma nas vias planas e nas rodovias é agradável e nem de longe há esse tormento que alguns insistem em lhe atribuir. E nos 95% das vezes em que o sistema acerta o momento perfeito da troca, dá uma alegria danada.
O problema é o referencial. Dê ao dono de um automatizado um automático moderno com conversor de torque e boa calibração, peça uma volta no quarteirão e olhe para a cara dele depois. Pergunte a alguém que nunca tomou banho quente, quando toma o primeiro, se quer voltar ao chuveiro gelado… Por isso decidi que minhas partidas, de agora em diante, serão tão suaves quanto o girar do conversor com seu fluido. De trancos, já me bastam os do chefe.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars