A vida poderia ser melhor ao Fiat Argo, se tivesse sua história bem contada como a do VW Polo
Tudo é uma questão de narrativa, da forma como você estrutura a história que vende seu peixe. E de uma história bem contada, convincente, você tira seus méritos. Sou levado a acreditar que a Volkswagen tenha sido mais efetiva em termos de narrativa do que a Fiat, quando comparamos as trajetórias de lançamento entre Polo e Argo.
Parei para pensar nessa história pela mera observação do vaivém do tráfego. Creio que a capital paulista é um bom local de amostragem para se avaliar o quanto um veículo de pretensões urbanas tem sido bem ou malsucedido em vendas. Por isso, sinto-me seguro em afirmar: jamais vi um Argo Precision ou HGT na rua. E nunca vi um Polo 1,0-litro.
A Volkswagen jamais cravou em público um número de expectativa mensal de vendas: apenas repete a narrativa de que “o Polo vem superando as expectativas”
Empiricamente arrisco que vejo quatro Argos 1,0 para cada Argo 1,3. Enquanto isso, noto que Polo exibe equilibrada repartição entre a versão MSI 1,6 e as denominadas 200 TSI, sejam Comfortline ou Highline. Certo, as duas marcas não abrem os mix de vendas, de forma que não tenho como cravar quanto de uma e de outra versão estão rodando por aí — assim, me baseio na mera observação. Pode ser que em sua cidade a Fiat esteja vendendo todos os Argos de 1,75 litro que não vejo aqui na metrópole.
Ainda que sem compromisso com a estatística, consigo tirar algumas conclusões mercadológicas, riscadas aqui no papel de pão enquanto espero meu tremoço na mesa do bar. A primeira de tudo: o Polo parece fazer mais sucesso. Digo parece porque sucesso tem a ver com a expectativa depositada pelo fabricante. No lançamento do Argo falou-se que Betim esperava vender por volta de 6 mil unidades mensais. A julgar pelo desempenho em 2018, a média fica em 4,5 mil. São Bernardo, em toda sua comunicação, jamais cravou um número chamado de “expectativa mensal”. Apenas repete a narrativa de que “o Polo vem superando as expectativas”, o que me lembra a duplicação de metas nunca estabelecidas pela ex-presidente.
O leitor é induzido a crer que o “Argo decepciona em vendas” e o “Polo supera”. O Polo, aliás, vende mais que o Argo — a média mensal fica em 5,8 mil unidades. Se as expectativas da VW estivessem em 7 mil ao mês, porém, o desempenho estaria aquém. Boa narrativa, não?
Padrão europeu
Segunda conclusão: moderno, caprichado, versus reaproveitado, readaptado. Bem antes de lançar o Polo, a VW já começou a contar a história da tal plataforma MQB. Textos cheios de adjetivos: mais moderna, mais leve, modular, ultra-alta resistência, “padrão europeu de exigência”, “produto global”. O Polo nasceria assim. A especulação jornalística matava o Fox, um produto de 15 anos pra lá de obsoleto. E o Argo? Quando foi flagrado em testes, as especulações diziam “vai matar Palio, Punto e Bravo de uma vez só”, “parece o Tipo europeu, mas só na aparência: vai usar a plataforma reaproveitada do Punto nacional”, “terá os mesmos motores retrabalhados”, “feito só para o Brasil”. Dá para perceber a diferença da narrativa?
No Polo, a marca assume a liderança da informação, gerando ela mesma os chamados leads — no jargão, o tópico ou assunto do qual o jornalista desenvolve seu texto. No lançamento feito a conta-gotas para aumentar a expectativa, a esmagadora maioria das avaliações trazia no texto “a nova plataforma MQB”, enquanto nas avaliações do Argo a informação que predominava era “plataforma traz elementos do Punto”. Dedução óbvia: nova versus velha. Não importa o quão acertado seja o carro, nem o quão prazeroso de guiar: é feito para o Brasil (senso comum: é produto inferior) e usa peças de carros ultrapassados.
Herdar a arquitetura do Punto não é demérito algum para o Argo, mas olhe a diferença dos adjetivos: “nova plataforma” para “plataforma reaproveitada”
O Punto foi um dos melhores automóveis compactos nacionais, reconhecido pelo acerto indefectível de chassi, direção e suspensão. Herdar uma plataforma dessas não é demérito algum, pelo contrário. Mas olhe a diferença dos adjetivos: “nova plataforma” para “plataforma reaproveitada”. Qualquer criança vai preferir a palavra nova do que reaproveitada… Tecnicamente é muito difícil dizer que esta ou aquela é melhor, mas quando uma versão vira verdade na boca de outros, sobram apenas os fracos argumentos.
Volkswagen e Fiat colocaram os dois carros para disputarem na entrada — faixa dos R$ 50 mil — e no topo, ao redor de R$ 70 mil. E o consumidor, a julgar pela escolha no ponto de venda, associa o Polo ao valor mais alto e Argo ao valor mais baixo. Ou seja: entende-se que vale pagar 70 no Polo, mas não vale pagar 70 num Argo. Aposto um doce que a margem de lucro de um carro na faixa dos R$ 70 mil é razoavelmente maior que dos carros na faixa de entrada, abaixo de R$ 50 mil.
É uma pena para o Argo, um produto tão bom e realmente válido. Tivesse a narrativa italiana criado e propagado adjetivos melhores, talvez o Argo tivesse substituído mais o Punto que o Palio. E olha que nem levei em conta o produto em si, apenas posicionamento e preço, já que eles brigam pelos mesmos quinhões de mercado. No fim, mesmo com potencial para bater o Polo (com pequenos ajustes plenamente factíveis, como um novo motor nas versões mais caras e transmissão automática na 1,3), restou ao Argo tentar combater o velho Gol.
Aos fabricantes, a lição: tudo vai de como você conta sua história.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars