Os carros, bons espelhos da sociedade

Observar os automóveis nas ruas e as tendências do mercado
pode dar uma boa dimensão da sociedade em que vivemos

 

Inspirei-me no ocaso das peruas, que estão minguando lentamente dos catálogos no Brasil, para filosofar sobre a relação que há entre esses fenômenos do mercado e as motivações que fazem o dinheiro migrar entre os mais diferentes hábitos de compra. O brilho espelhado da pintura de um gigante utilitário esporte importado pode ter uma nobre função metafórica: já parou para observar que os carros são uma espécie de espelho da sociedade em que estão inseridos?

Voltando às peruas e ao cartesianismo: são veículos que têm um grande compartimento de bagagem, supostamente porque servirão a um núcleo familiar com muitos filhos, tralhas e animais de estimação. Seu conceito óbvio enquanto produto é tornar a movimentação das famílias mais confortável em viagens, compras… Cabe tudo, cabem todos, como dizia o comercial da Chevrolet Zafira, que nem perua era.

 

Hoje os jovens trabalham, mas prolongam a condição de solteiros que vivem com os pais por alguns (ou muitos) anos a mais. Conta no fim do mês: mais dinheiro livre

 

Agora observe a seu redor e conclua o que aconteceu com o conceito de família na sociedade brasileira de hoje. Transformou-se a demografia; as pessoas quase não se casam mais — entenda casamento como uma união estável entre duas pessoas sob um mesmo teto — e, quando optam por ter filhos, têm um, no máximo dois filhos, sem enumerar o crescente número de casais homossexuais, que provavelmente jamais terão rebentos.

A decisão por esse já fragilizado casamento ocorre cada vez mais tarde. Mais e mais pessoas optam por viver sozinhas; outras continuam com os pais, mas sem uma expectativa de relacionar-se e ter filhos. Então, seguem-se a essas tendências sociológicas muitas consequências que podem ser facilmente percebidas pelo tipo de carro que essa sociedade demanda.

O período economicamente próspero do trabalho vai dos vinte e poucos aos cinquenta e poucos anos, quando o profissional está no auge de sua capacidade, produzindo muito e ganhando bem. Na estrutura social de poucas décadas atrás, era muito provável que um homem de vinte e poucos anos já fosse casado, pai de família, com todas as despesas que essa condição traz. Na estrutura de hoje, os jovens de vinte e poucos trabalham, mas prolongam a condição de solteiros que vivem com os pais por alguns (ou muitos) anos a mais. Conta no fim do mês: mais dinheiro livre. A consequência: busca por produtos que reflitam esse estrato do mercado, sua personalidade, seu estilo de vida.

 

 

O playboy e o pai de família

Os homens de 30 anos do passado compravam Belinas e Caravans não porque achassem esses carros emocionantes: era estritamente necessário, sob pena de arranjar confusão com a patroa. Compravam peruas, mas seus corações estavam arrebatados pelos Mavericks, Darts, Passats TS e outros esportivos quaisquer. Seus automóveis refletiam fielmente seu estilo de vida. Tanto que os jovens que desfilavam a bordo de cupês e carros esporte como Karmann Ghia e Puma, que só permitiam o motorista e mais um passageiro (a namorada, é claro), logo eram tachados de playboys — nomenclatura que rotulava à época o jovem bem de vida que desfrutava uma vida hedonista.

A todos os espectadores cruelmente imersos no senso comum social de “esposa, quatro ou cinco filhos e perua na garagem”, aquilo era um tapa na cara. Cuidando de tantos dependentes, o dinheiro era mais escasso e a compra de um automóvel tinha de ser uma decisão racional. Olhar os automóveis daquele tempo era entender como a sociedade se estruturava.

 

A indústria é esperta, sabe que ele quer um carro pequeno, mas cheio de simbolismo, e trata de cobrar o quanto isso vale para ele: ser cool não é barato

 

Algumas décadas depois, ainda é grande a parcela de pessoas que tem automóveis como aspiração de consumo. Uma economia mais aquecida, com mais dinheiro circulando, e uma transição na ética liderada por valores orientados ao consumo — onde se vincula a imagem de um indivíduo, mais que nunca, ao tipo de automóvel que possui — transformaram a paisagem nas ruas.

Carros pequenos, minúsculos até, espremidos aos milhões nas avenidas das grandes cidades. Minúsculos e caríssimos, mais caros até que as grandes peruas de outrora. Agora, é maior a fatia dos jovens economicamente ativos que têm dinheiro livre para satisfazer suas necessidades automobilísticas e, como é comum da idade, afirmar-se em seu grupo social tendo o carro como símbolo. A indústria é esperta, conhece a cabeça do jovem. Por isso, sabe que ele quer um carro pequeno, mas cheio de simbolismo, e trata de cobrar o quanto isso vale para ele. Ser cool não é barato.

Também não deixou de lado os mais velhos, que ainda têm família. O problema é que, nos dias de hoje, mesmo os pais de famílias numerosas querem parecer aos olhos da sociedade alguém mais importante do que se é. Ter uma perua passou a não pegar bem e, após alguns anos, o mesmo se aplicou à minivan. Logo inventaram esse papo de utilitário esporte… que, prático, não é. Barato, não é. Espaçoso, talvez. Perdulário, certamente.

As peruas que restam vêm sendo maquiadas com adereços fora de estrada, para ver se ainda tiram algum caldo desse segmento em desuso, mas nem isso parece mais reviver a velha guarda. Pena, porque essa substituição não é nada boa, seja para o planeta, seja para o motorista, porque dirigir um utilitário esporte num estacionamento de shopping pode ser como encaixar um parafuso numa máquina de relógio.

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