A euforia do comprador e as duas caras do ágio

O sobrepreço do carro, como se vê hoje com alguns modelos
compactos, é uma patologia psicológica, não econômica

 

A única transação econômica na qual não há acordo entre duas partes é o roubo. O ladrão (nota do autor: indivíduo que pode estar armado, vestir terno em uma mesa de banco ou ser um operador de gabinete político) aponta uma arma para sua cabeça e não lhe resta opção: ou você transfere o dinheiro ou perde a vida. Salvo esse tipo de coação, todos os eventos econômico-financeiros são frutos de acordos entre duas partes.

Karl Marx já filosofava sobre isso em meados do século 18, atribuindo às mercadorias o que chamava de “valor de uso” e “valor de troca”. Tudo com o objetivo de balizar minimamente quanto as coisas valiam, em última análise, para evitar que fôssemos “roubados”, pagando mais por coisas que não tinham valor de uso ou valor de troca suficiente. Infelizmente, Marx não chegaria vivo aos dias de hoje para nos ajudar a entender que diabos se passa na cabeça dessas pessoas que pagam ágio na compra de um carro.

O ágio é uma apreciação anormal do preço de alguma coisa, vinculada à lógica mais primitiva das economias de mercado e que respeita a velha máxima da oferta versus demanda. Ou seja: quando algo tem mais demanda que oferta, o preço sobe; quem viveu o auge do Plano Cruzado na década de 1980 sabe bem o que é isso. No entanto, é possível analisar o ágio com duas abordagens, o que proponho a seguir.

 

Em ambas as situações há uma clara desvantagem imposta a uma das partes — algo que ultrapassa o que vou denominar de “lucro saudável”

 

Na primeira delas, o sujeito que paga o ágio é um pai de família ou uma dona de casa, que se sente premido pela preocupação do desabastecimento e da possibilidade de faltar em sua casa, a seus filhos, gêneros de primeira necessidade — arroz, feijão, carne, papel higiênico. No caso de um hipotético desabastecimento, ele aceita pagar um sobrepreço injusto com o objetivo de tranquilizar-se e garantir à família as condições básicas.

Na segunda, o camarada deseja muito um produto que, por algum motivo psicológico que analisaremos depois, adquire na escala de necessidade desse sujeito uma dimensão igualmente anormal. Ele pode viver perfeitamente sem tal produto, e o mais pernicioso: além de não ser de primeira necessidade, o produto não é nada barato, portanto é pouco acessível às massas. Mais um agravante: existem dezenas de produtos similares em qualidade, em atributos, muito bem alinhados ao mercado quando analisados seus valores de uso e valores de troca. Ainda assim, o camarada aceita pagar 10, 15 ou 20% a mais que o preço sugerido.

Em ambas as situações há anormalidades nas transação, pois há uma clara desvantagem imposta a uma das partes — algo que ultrapassa o que vou denominar aqui de “lucro saudável”, ou seja, aquele que é justamente obtido em função do valor do trabalho ou da intermediação comercial comum. Quero deixar que o juízo de valor fique a cargo do caro leitor. Seria a diferença semântica entre a necessidade e o desejo.

 

 

Antes de (quase) todos

Nos últimos meses há uma efervescência de lançamentos no segmento dos carros compactos no País. Chevrolet Onix, Citroën C3, Ford Fiesta, Hyundai HB20, Peugeot 208, Toyota Etios. Visitei algumas concessionárias para analisar os lançamentos, conferir pessoalmente suas linhas, seu acabamento; enfim, aquela tarefa prazerosa para os amantes de carro como nós. Claro, conferi todos os preços oficiais antes de interpelar vendedores e perguntar o valor das versões à venda.

Hyundai, Ford e Peugeot tinham sobrepreço que variava de R$ 1,5 mil a incríveis R$ 3 mil, no caso da versão básica do Fiesta. Não acreditei que haja pessoas dispostas a pagar tanto dinheiro a mais, só por desejar ardentemente ter um carro antes que (quase) todo mundo. Ainda mais quando há opções interessantes na concorrência, como o Fiat Punto e o próprio renovado C3, que podem ser comprados pelos valores sugeridos — quiçá com algum desconto. Olha-se o ranking de vendas e lá estão eles, subindo a todo vapor. Por motivos óbvios, o único que oferecia deságio era o Etios, que patina nas vendas.

 

Muitos pagaram R$ 12 mil em 1994 por um Corsa cujo preço de tabela era de R$ 7,5 mil: por que insistimos em repetir atitudes tão imbecis?

 

Embora haja uma vontade inicial de culpar o lojista pela ganância, custo a enxergar que essa anomalia econômica seja fruto apenas da usura desenfreada. Há o personagem do outro lado da mesa, assinando o cheque com uma euforia doentia. A psique desse indivíduo é patológica, movida por um descontrole irracional que o impede de exercer mínima autocrítica e enxergar o papel de tolo que exerce.

Tolo porque queima dinheiro à toa; tolo porque paga por uma sensação de exclusividade e primazia efêmeras; tolo porque necessita de um acessório chamado “automóvel” para preencher um vazio emocional que ele mesmo é incapaz de nominar, mas que o domina e move suas mãos, implorando ao ladrão que o assalte. Esse vazio é alimentado nesses indivíduos pela máquina da mídia, que vomita diuturnamente sobre todos imagens afirmativas de que pessoas bem-sucedidas são aquelas que “têm”, não que “são”. O ágio é a pústula que estoura na pele quando a doença já tomou todo o corpo.

Enquanto houver aqueles que choram, haverá os que vendem lenços — e por essa razão não é possível culpar unicamente o agiota. Lembro-me daqueles que pagaram R$ 12 mil em 1994 por um Chevrolet Corsa cujo preço de tabela era de R$ 7,5 mil. O que é e quanto vale hoje um Corsa 1994? Por que insistimos em repetir atitudes tão imbecis? Levem meu dinheiro, mas levem também minha consciência, pois, se é difícil viver em uma sociedade miserável, é impossível em uma sociedade de otários.

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