O tempo fez cada fabricante abandonar convicções e assumir
outras prioridades, em uma mudança nem sempre para melhor
Em minha coluna de estreia, o assunto foi a Volkswagen Kombi e uma fantasiosa estatização de sua linha de produção, com chances tão remotas de acontecer quanto a fabricação local do Porsche 911. O tema pode ter deixado a impressão de que não gosto da marca ou do produto, mas na verdade sempre nutri uma admiração pelo fabricante de Wolfsburg e um carinho especial pela velha guerreira — mesmo achando que ela deveria ter entrado para os livros de história em 1980.
Não adianta: por mais que negue, todo jornalista automotivo tem (ou teve) uma marca “do coração”, aquela que altera a frequência cardíaca e mexe com o brio nas discussões mais acaloradas. É o mesmo dilema dos comentaristas de futebol, que quase sempre declaram ao público o clube para o qual torcem: é mais fácil colocar os pingos nos “is” do que tentar explicar o inexplicável depois. Questão de sinceridade e respeito.
Tempos de mercado fechado, em que era possível reconhecer marca e modelo a quilômetros e cada fabricante tinha identidade própria
Minha ligação com a VW surgiu nas reuniões familiares dominicais, na última casa de uma extensa rua sem saída. Cada tio aparecia com seu bólido e cada primo defendia com unhas e dentes a honra da marca escolhida. Os Volkswagens reinavam, entre Gols e Passats, mas havia de tudo — Chevette, Escort, Monza, Del Rey e até Opala. Fiats eram motivo de bullying entre primos, no tempo em que isso se chamava apenas gozação.
Tempos de mercado fechado, em que era possível reconhecer marca e modelo a quilômetros de distância: Renault, Peugeot e Citroën eram bichos exóticos, vistos apenas nas revistas e nas cartelas de Super Trunfo. Cada fabricante tinha identidade própria: a VW com sua confiabilidade, a Ford com a qualidade de construção e acabamento e a GM amealhava prestígio conciliando ambos. A Fiat engatinhava: ainda lutava contra a injusta fama de problemática.
Vinte e cinco anos se passaram e a família continua se reunindo no mesmo local. O cenário agora é dominado pelos Fiats, novo ícone nacional de confiabilidade e popularidade. Os tios mais tradicionais ainda compram VW, mas são minoria. Um Ford aqui, um Chevrolet ali e o restante migrou para Honda e Toyota. Alguns se aventuram pelos franceses (especialmente Renault) e a ala da Hyundai está crescendo.
Outros tempos
É impressionante como ninguém mais se apega a esses conceitos de identidade: superada a questão da confiabilidade, nada segurou a Fiat, líder de vendas quase desde a virada do milênio. Os entusiastas da dinastia Lampredi foram literalmente abandonados há 10 anos, quando a Fiat abriu mão de seus sonoros e giradores motores em favor de um motor convencional, o Chevrolet de 1,8 litro. O pragmatismo falou mais alto: tradição não paga contas.
Por outro lado, é impressionante ver o descenso da GM: nos anos 80 e 90 todo morador de São Caetano do Sul, SP, tinha um brilho no olhar cuja intensidade aumentava ao cruzar com um Opala, Monza, Omega ou Vectra, sempre reverenciados por quem entendia um mínimo de automóvel. O fabricante nunca mais foi o mesmo depois que entrou de sola no rentável mercado de populares: hoje o que vale é a quantidade colocada nas ruas, não a qualidade.
Exemplo disso foi a última encarnação do Vectra: a GM acreditou que proporções generosas e dupla vedação nas portas seriam suficientes para resgatar a clientela perdida para Civic e Corolla. Funcionou nos primeiros meses, mas o público logo percebeu que havia algo de errado — panes intermitentes, acabamento insatisfatório e um consumo voraz. E pensar que cobraram R$ 90 mil por um desses.
Nos anos 80 e 90 todo morador de São Caetano do Sul, SP, tinha um brilho no olhar ao cruzar com um Opala, Monza, Omega ou Vectra
Outro dia cruzei na rua com um engenheiro aposentado da GM: agora ele é o feliz proprietário de um automóvel nipo-brasileiro, fabricado no interior de São Paulo. Incrédulo, arregalei os olhos, e ele respondeu, resignado: “Para você ver, Bitu, a que ponto chegamos…”. Conhece muito de automóvel e é imune a qualquer estratégia de marketing, a ponto de considerar a troca do japonês por um Hyundai.
Isso mesmo: aqueles Mitsubishis requentados da década de 1990 são coisa do passado. Fiquei surpreso com o piracicabano HB20, pois não botava uma fé que eles seriam capazes de fazer algo tão bom quanto os aclamados Azera, Tucson e I30. Aliás, o mercado do I30 foi entregue de mão beijada pela VW, que insistiu em não atualizar um de seus melhores produtos, o Golf.
Tenho um amigo que comprou Golfs por muitos anos, mantendo a tradição dos precursores Passat e Gol. Pegava um Golf novo de dois em dois anos, mas em 2010 tudo mudou com a chegada do I30: qualidade, equipamentos e um motorzão de 145 cv por preço menor que o do alemão de São José dos Pinhais, PR. Tentava argumentar na concessionária VW, mas era tratado com empáfia: “Nosso produto é claramente superior ao coreano”.
É incrível, mas a VW mente para si mesma: ainda acredita numa superioridade técnica em relação à concorrência, provavelmente um resultado dos 42 anos em que liderou o mercado. É sempre muito bom curtir o Jetta TSI, o motor turbo e seu câmbio DSG, mas o grosso ainda é composto pelo motorzinho EA111 de 1,6 litro. Mesmo com calibração quase perfeita, sua presença por incontáveis anos só perde para a do onipresente EA827, o famigerado VW AP.
Talvez por isso eu tenha ficado tão contente ao rodar com o novo motor EA211 de 1,0 litro e três cilindros no Fox: com quatro válvulas por cilindro e variação do tempo de abertura das válvulas, ele surpreende pela disposição em qualquer regime e pela economia de combustível. É tão bom que logo começam os devaneios: a VW bem que poderia fabricar um seis-cilindros em linha com 2,0 litros baseado na mesma arquitetura. Mas isso aí não é BMW, então vamos voltar à realidade.
Para mim, hoje a VW é mais uma no meio do balaio: só tenho olhos caridosos para os modelos do passado, que já frequentam os encontros de antigos. Há um zunzunzum na área sobre um Gol GT com motor 1,6 16V de 130 cv. Seria muito bom para resgatar algum fiapo de entusiasmo pela marca no meu coração, mas do jeito que conheço a VW aposto que ele virá com o EA113 do Jetta aspirado. Quase um GTI 1989…
Enquanto outras se perdem, a Ford vem progredindo. Os novos Fiesta, Focus e Fusion são ótimos produtos, embora prejudicados pela falta de uma estratégia de marketing mais convincente, no que a marca parece estar atrás apenas da cambaleante Nissan. Mesmo assim, já há uma legião de “fordeiros” descontentes, sobretudo com a qualidade dos materiais internos. Parece que os dias de glória de Corcel, Del Rey e Galaxie não voltarão jamais.
São mesmo outros tempos.
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