Nascido em cenário turbulento, o “compacto” requintado
ensinou novos conceitos à General Motors e a toda a Detroit
Texto: Fabrício Samahá e Fabiano Pereira – Fotos: divulgação
Se a década de 1970 foi um período obscuro para a indústria norte-americana de modo geral, o ano de 1975 foi negativo em particular. Não apenas eram sentidos em sua plenitude os efeitos da primeira crise do petróleo, deflagrada dois anos antes: havia também normas de segurança, de emissões poluentes e de controle de consumo, que os fabricantes precisavam seguir e que resultavam em carros menos potentes ou interessantes para grande parte do público. Modelos importados ganhavam espaço no mercado; Detroit estava em declínio.
Por tudo isso, 1975 foi um ano sem lançamentos marcantes de automóveis nos Estados Unidos, salvo por um: o Cadillac Seville.
Poucas vezes um Cadillac pôde ser tão justamente chamado de um exemplo de bom gosto. Habitual produtora de carros nos quais tudo é superlativo em tamanho, a divisão de luxo da General Motors decidiu inovar com essa sua primeira incursão no segmento dos “compactos”, como os norte-americanos ainda chamavam os carros médios tão menores que seus tradicionais modelos full-size (tamanho máximo).
Mais curto em 68 cm e meia tonelada mais leve que o DeVille, o Seville representou
grande redução de tamanho, mas não de preço: era um dos mais caros Cadillacs
Ciente de que o Seville buscaria as vendas perdidas para marcas estrangeiras, sobretudo a Mercedes-Benz com seu Classe S, a Cadillac se empenhou para criar um carro de beleza e elegância únicas. Em vez de copiar o estilo do Velho Mundo, seus projetistas usaram proporções europeias num desenho bem norte-americano, com discrição e leveza impressionantes para um “Caddy”. Reto e anguloso, tinha a coluna traseira num ângulo de quase 90° em relação à cintura do carro, quatro faróis retangulares, teto revestido em vinil e para-choques cromados, mas não tão grandes quanto vinha sendo habitual. Seria inspiração para vários outros modelos.
Menor que os outros modelos da linha em tantos aspectos, o Seville ao menos era movido por um V8, que trazia a primeira injeção eletrônica que deu certo em um carro norte-americano
O nome Seville, de uma cidade e uma província espanholas, havia sido usado antes numa versão hardtop do Eldorado, produzida entre 1956 e 1960, e foi escolhido entre opções como LaScala, St. Moritz e LaSalle — o mesmo de uma divisão da GM, extinta em 1941, que havia atuado como “marca de companhia” para a Cadillac.
A corporação tinha pressa: diante do fato de que muitas concessionárias de sua marca de luxo estavam assumindo franquias da Mercedes e da BMW, a empresa definiu como 14 meses o tempo para o desenvolvimento do carro ante uma média de 24 a 36 meses na época. Não faltaram alternativas para tornar mais ágil esse processo. Pensou-se em criar uma versão do Opel Diplomat alemão (que usava o motor Chevrolet V8 de bloco pequeno) ou mesmo de modelos da Holden australiana, mas as alterações necessárias à estrutura custariam mais que adaptar uma plataforma local. Outro estudo abandonado foi o de usar a plataforma de tração dianteira do Eldorado e do Oldsmobile Toronado: não havia escala de produção suficiente do transeixo usado em sua transmissão.
Ar-condicionado, comutação de faróis e liberação do freio de estacionamento
eram automáticos; a alavanca de câmbio vinha na coluna de direção
Por fim foi escolhida a arquitetura X da GM norte-americana, também conhecida como NOVA — as iniciais dos modelos Chevrolet Nova, Oldsmobile Omega, Pontiac Ventura e Buick Apollo, que a empregavam —, com um subchassi aplicado ao monobloco (não confundir com os “carros X” de tração dianteira, como o Chevrolet Citation, que só surgiriam em 1979). De tão modificada, ganhou a nomenclatura K. Como foi aproveitada a estamparia da parte dianteira do teto dos demais modelos, mas associada a uma nova parte traseira, o Seville vinha de série com revestimento de vinil a fim de esconder a emenda de chapas.
Com 5,18 metros de comprimento, 1,82 m de largura, 2,90 m de distância entre eixos e peso de 1.925 kg, o carro era 68 centímetros mais curto, 20 cm mais estreito e cerca de meia tonelada mais leve que um DeVille, embora continuasse mais longo que um Jaguar XJ12L e quase tanto quanto um Mercedes S. Essa redução de tamanho — downsizing, termo hoje em voga outra vez, mas relacionado à cilindrada dos motores — foi um passo de ousadia da GM: até então, Detroit entendia que a ideia de oferecer carros de luxo menores aos norte-americanos estava fadada ao insucesso. O consumidor nunca pagaria por um automóvel compacto o mesmo que por um modelo grande; se desenvolver o veículo menor custasse mais, fechar a conta seria ainda menos provável. Contudo, agora havia fatores importantes para estimular a redução.
Menor que os outros modelos da linha em tantos aspectos, o Seville ao menos era movido por um V8. O motor de 5,75 litros com comando de válvulas no bloco, potência de 180 cv e torque de 37,9 m.kgf vinha da divisão Oldsmobile, mas trazia a primeira injeção eletrônica de combustível que deu certo em um carro norte-americano, fornecida pela Bendix (nos anos 50, a tentativa da mesma empresa junto à Chrysler não foi bem-sucedida) e lançada pouco antes pela Cadillac no Eldorado de 8,2 litros. Catalisador era item de série, mas a injeção resultava em um motor tão “limpo” que poderia atender às normas de emissões da Califórnia, então as mais severas, sem o dispositivo.
O objetivo da Cadillac com esse médio de alto luxo era enfrentar a Mercedes-Benz
e a BMW, marcas para as quais vinha perdendo clientes e até concessionárias
A tração ainda era traseira, com caixa de câmbio automática de três marchas de série, suspensão dianteira independente com braços sobrepostos e traseira com eixo rígido e feixe de molas semielípticas; freios a disco vinham apenas na frente.
Sua lista de equipamentos incluía comandos elétricos em praticamente tudo, ar-condicionado com ajuste automático de temperatura, volante ajustável em altura e distância, comutação automática entre os fachos alto e baixo dos faróis, para-sóis com espelho e iluminação em dois níveis, liberação automática do freio de estacionamento e até iluminação para encontrar a fenda da chave na porta. Opcionais, só dois: rádio e teto solar — inesperado para um Cadillac, pois a marca havia habituado o público a extensas listas de opções. O painel tinha velocímetro em escala horizontal e a alavanca de câmbio vinha na coluna de direção.
Choveram elogios ao Seville na imprensa mundo afora, mesmo com um preço não proporcional ao tamanho: pequeno por fora (para um Cadillac), mas requintado por dentro, ele só custava menos que a limusine Fleetwood 75, de produção reduzida, e superava em 20% o valor de um Eldorado conversível! Um paradoxo não visto na marca desde o lançamento em 1938 do modelo 60 Special, então o menor e o mais caro Cadillac.
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Nas telas
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Sevilles de todas as gerações podem ser vistos no cinema. São da primeira fase de sua história os carros de 1976 do filme policial Jackie Brown (1997), do terror A Morte Pede Carona (The Hitcher, 1986), da comédia Car Wash, Onde Acontece de Tudo (Car Wash, 1976) e do drama Wildfire (1988), assim como os modelos 1977 da ação Exterminador Implacável (Wanted: Dead or Alive, 1987) e do filme de mesmo tipo Trabalho Sujo (Men at Work, 1990).
A geração lançada para 1980, com sua traseira peculiar, aparece nos filmes de ação Supergirl (1984) e Uma Tremenda Confusão (A Fine Mess, 1986), no policial Os Imorais (The Grifters, 1990) e, em uma exótica versão limusine, na comédia Johnny Bom de Transa (Johnny Be Good, 1988).
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Mais raro nas telas, o modelo de 1986 ainda assim tem presença relevante na comédia O Amor Pede Passagem (Management, 2008). A geração seguinte, de 1992, é vista na ação Equilibrium (2002) e, em versão STS, nos filmes de terror Resident Evil 2 – Apocalipse (Resident Evil: Apocalypse, 2004) e À Beira da Loucura (In the Mouth of Madness, 1995).
A atraente última geração do Seville realmente se internacionalizou, como mostra a aparição na ação francesa Les Insoumis (2008). Também está presente nos filmes norte-americanos de ação Survival of the Illest (2004) e O Implacável (Get Carter, 2000).