O 1111 de 1964 deu partida a uma linha de grande sucesso, que teve versões com três vezes a potência do original
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação/reprodução
Nas cidades ou nas estradas, com carrocerias e adaptações variadas: por várias décadas, uma das linhas de caminhões mais comuns pelo Brasil foi a da Mercedes-Benz com cabine AGL, a de maior longevidade que a marca alemã produziu no País, tão popular que alguns a consideram “o Fusca dos pesados”.
A história da empresa por aqui começou de maneira quase acidental. O polonês Alfred Jurzykowski, dono de fábrica de biscoitos de chocolate nos Estados Unidos, chegava ao Brasil em 1950 em busca de um novo fornecedor de cacau. Ao perceber a escassez de ônibus, ele importou chassis de caminhão Mercedes-Benz para esse fim – e vendeu tão rápido que se tornou o distribuidor nacional de veículos da marca.
Inaugurada por Juscelino (à esquerda), a fábrica de São Bernardo começava a fabricar o L-312 (à direita) para seis toneladas, seguido pelo modelo LP-321 de “cara chata”
Pioneira no desenvolvimento do automóvel (em 1886) por meio de Karl Benz e Gottlieb Daimler, do ônibus (1895) por Benz e do caminhão (1896) por Daimler, a Mercedes foi também a primeira fábrica estrangeira a firmar um compromisso de nacionalização de veículos com o governo brasileiro. Jurzykowski começava em 1951 a montar conjuntos semidesmontados (processo SKD) no Rio de Janeiro, RJ, e depois em São Paulo, SP. Naquele ano, assinava um plano de fabricar caminhões e ônibus com motor Diesel no País.
A Mercedes-Benz do Brasil S.A. era fundada em outubro de 1953 e iniciava a construção de uma fábrica em São Bernardo do Campo, SP, às margens da Rodovia Anchieta – o município se tornaria um polo de produção de veículos com fábricas como Volkswagen, Simca, Scania e Willys-Overland, esta depois absorvida pela Ford. O empresário polonês detinha 75% das ações. Dois anos depois, em parceria com a Sofunge, a Mercedes fundia um bloco de motor Diesel pela primeira vez na América Latina.
Na inauguração da fábrica, em setembro de 1956, o presidente da República Juscelino Kubitschek – grande incentivador da indústria automobilística – circulava a bordo de um Mercedes L-312 para seis toneladas de carga, o primeiro caminhão médio brasileiro com motor Diesel. O veículo usava motor de seis cilindros em linha e 4,6 litros com potência de 110 cv, cabine recuada e freios hidráulicos com assistência pneumática.
Com o arredondado “Onze Onze”, em 1964, a fábrica enviava às concessionárias o começo de uma linha bem-sucedida no Brasil por mais de 25 anos
Embora o conteúdo local do L-312 ainda fosse baixo, os planos da Mercedes eram ambiciosos: fabricar no Brasil dois caminhões, um ônibus e um automóvel (o sedã 180 Ponton, o que nunca aconteceu). Depois do LP-321 de cabine avançada ou “cara chata” em 1958, a empresa fazia em 1964 um lançamento de grande presença: o L-1111, primeiro da série com cabine semiavançada AGL, que seria sua linha mais vendida no Brasil.
Um marco dessa história, o L-1113, era lançado em 1970 com motor de 5,7 litros e PBT de 11 toneladas: cerca de 200 mil unidades seriam vendidas até ele sair de linha em 1987
O caminhão médio, derivado do L-323 em produção na Alemanha desde 1959, associava o chassi e a mecânica do LP-321 a um formato mais ao gosto dos brasileiros, com o motor à frente dos ocupantes. Até então, apenas o Mercedes “cara chata” e o antigo FNM tinham a cabine sobre o motor. Para-brisa inteiriço, sistema de ventilação e cabine montada em coxins traziam mais conforto.
O “onze-onze” tinha motor de seis cilindros em linha e 5,1 litros com 110 cv, ainda com injeção indireta, e transmissão de cinco marchas sincronizadas. Como o antecessor, oferecia três versões: L (Lastwagen, caminhão em alemão) com três opções de distâncias entre eixos, LK (Kipper ou basculante) e o cavalo mecânico LS (Sattelschlepper ou reboque). O número 1111 indicava o peso bruto total (PBT) de 11 toneladas e a potência de 110 cv, um padrão duradouro nessa e em outras marcas. No ano seguinte estreavam o LA, o LAK e o LAS-1111 com tração 4×4.
A série 1111 incluiu o basculante LK (em cinza) e versões com tração 4×4 (última foto); seis anos depois aparecia o mais potente 1113 (em azul e no anúncio)
O motor Diesel ainda consistia exceção – 17% do mercado de veículos comerciais – em um país onde predominavam caminhões a gasolina de origem norte-americana. Muitos motoristas e frotistas os rejeitavam pelo maior custo, a baixa potência e a imagem de manutenção cara. A Mercedes então investiu fortemente em publicidade, destacando vantagens como o custo de operação bem menor, a longevidade do motor e a velocidade média resultante do maior torque.
A reação do mercado foi positiva: em 1966 a empresa alcançava a marca de 75 mil caminhões nacionais. Na linha 1969 os modelos médios ganhavam alternador e opção de direção assistida hidráulica — outro item que levou tempo para ser aceito pelos caminhoneiros do País. Nesse ano a Mercedes alcançava a liderança do mercado de caminhões, que manteria por 35 anos.
“Poderosíssimo” , mas “de fala mansa”: a linha Mercedes oferecia opções variadas nos anos 70, capazes de tracionar até 40 toneladas (a foto do interior mostra um 2013)
Outro marco de sua história, o L-1113, era lançado em 1970. Com motor de 5,7 litros com injeção direta, 130 cv e PBT de 11 toneladas, também oferecia as versões LK e LS. Cerca de 200 mil unidades seriam vendidas até ele sair de linha em 1987. Na sequência vinham o 1313 (13 toneladas, 130 cv) com chassi reforçado e freios mais potentes, o 1315 (150 cv) e o L-2013, primeiro semipesado da linha, com PBT de 21 toneladas. Pela primeira vez na indústria nacional o terceiro eixo em tandem do L-2013 era instalado de fábrica, dispensando adaptações. O L-2213 com tração 6×4 aparecia em 1971.
Com atuação ainda modesta no segmento de pesados, liderado pela Scania, a Mercedes investia em novos modelos com regularidade. Em 1973 era a vez do cavalo mecânico LS-1519 com motor de cinco cilindros, 9,65 litros e 192 cv, capacidade de tração de 32 toneladas e opção de cabine leito com duas camas. Dois anos depois o LS-1924, capaz de tracionar 40 toneladas, trazia sob o capô alongado um motor de 268 cv.
A série AGL continuou a ganhar versões. Para terrenos difíceis como áreas de mineração havia o basculante LAK-2624 com tração 6×4. Em patamar mais baixo, o cavalo LS-1516 podia tracionar 22,5 toneladas. O LB-2219 combinava motor de 192 cv, tração 6×4 e chassi próprio para betoneiras. Para uso militar surgia o LG-1519 com cabine aberta com teto de lona, tração 6×6 fornecida pela Engesa, caixa de transferência (reduzida) e bloqueio de diferencial nos três eixos. O marco de meio milhão de veículos produzidos era atingido em 1979.
L-2219 com tração 6×4 (azul), o versátil 1113 em versão basculante (vermelho), LG-1519 em uso pelo Exército e o potente LS-1924 A (branco) de 268 cv: uma linha com 1.001 utilidades
Em meio à crise econômica, a Mercedes revelava em 1982 uma atualização visual da linha. A frente recebia para-choque maior e uma “máscara” negra com grade e quatro faróis retangulares com lâmpadas halógenas. O interior ganhava novo painel, mais regulagens para o banco do motorista e melhor isolamento térmico e acústico. Os motores eram revistos para melhor eficiência e freios pneumáticos vinham de série nos caminhões médios. Apareciam até modelos a álcool para uso em canaviais. Primeiro foi o L-2213 com motor de ciclo Diesel, cinco cilindros e 192 cv; depois o L-2215 com a unidade de ciclo Otto, seis cilindros e 150 cv. A versão Otto não foi bem recebida pelo consumo elevado (em geral menos de 1 km/l) e o menor torque.
Mais potente, o LS-1929 chegava ao mercado em 1983, sete anos após ser apresentado. Tracionava 45 toneladas com o motor turboalimentado de seis cilindros e 285 cv, tinha transmissão de 16 marchas e dois tanques de combustível de 300 litros cada. Ainda mais vigoroso era o LS-1932 de 1985, com motor de 11,5 litros e 320 cv para a mesma capacidade de tração. Para abrigar o resfriador de ar do turbo (intercooler), o capô era de plástico e fibra de vidro com mais entradas de ar. Os modelos 1313 e 1513 davam lugar aos 1317 e 1517 com motor de 170 cv.
Máscara negra tentava atualizar o antigo desenho; o L-2215 (azul) era movido a álcool; com os LS-1933 e LS-1934 (inteiros em branco), a linha AGL despedia-se com imponência
Novas designações vinham em 1987, como de 1113 para 1114, de 1517 para 1518 e de 2013 para 2014, mas sem aumento de potência. Como o governo de José Sarney havia congelado os preços, a indústria só podia aumentá-los mediante novas versões, que nesse caso eram idênticas às anteriores. Mais potente, só o novo topo de linha LS-1934, com 340 cv para tracionar 70 toneladas. O caminhão vinha todo em branco — o único da série sem a grade preta — e trazia carenagem plástica nas laterais, entre o primeiro e o segundo eixo, com o número 1934.
Era o canto do cisne para a série iniciada 23 anos antes com o L-1111. A Mercedes lançava em 1989 novos caminhões médios, seguidos um ano depois pelos pesados, até que toda a linha estivesse modernizada. Chegavam ao fim os clássicos modelos com cabine AGL.
Na Alemanha
A série com cabine AGL surgiu na Alemanha em 1958 com os modelos mais pesados, dotados de motores de 10,8 litros, e ganhou em 1961 opções mais leves com a unidade de 4,6 litros. De início foi mantida a denominação com três algarismos (L-323 e L-337, por exemplo), como nos antecessores, mas em 1963 a Mercedes adotava o padrão de quatro dígitos com o qual a linha chegou ao Brasil.
Como aqui, lá houve numerosas opções de comprimento, tração, motor e capacidade de carga. O L-2628, por exemplo, tinha capacidade de 26 toneladas e potência de 280 cv. Os mais potentes adotavam capô alongado em 20 cm e alguns traziam os faróis no para-choque. Os modelos foram produzidos até 1982 e não chegaram a ter a máscara negra dos brasileiros. Como produção ou montagem de conjuntos desmontados, a Mercedes fez os caminhões também na África do Sul, na Arábia Saudita, no Irã e na Nigéria.