Hummer, da tempestade no deserto ao furor nas ruas

Criado para uso militar, o jipe chamou atenção de famosos como Schwarzenegger e ganhou versão civil

Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação

 

A história do veículo militar que fez sucesso entre civis não é nova: foi assim que nasceu em 1941 o mais famoso 4×4 nos quatro cantos do mundo, o Jeep da Willys, imitado de alguma forma por numerosas marcas. Mas a trajetória se repetiria na década de 1990 com o Hummer.

O Jeep e seus derivados haviam sido os veículos militares leves por excelência para o Exército dos Estados Unidos até a década de 1970, quando as forças armadas passaram a buscar uma alternativa maior, mais moderna… e única, para facilidade de manutenção e logística de peças. O Exército anunciava em 1979 seus parâmetros para o High Mobility Multipurpose Wheeled Vehicle (HMMWV) ou veículo multiuso com rodas de alta mobilidade, destinado aos segmentos entre 250 e 1.250 kg de capacidade.

Os padrões incluíam, entre outros, vão livre mínimo do solo de 410 mm, inclinação máxima de 60 graus e resistência a trechos alagados de 76 cm de profundidade. Embora mais de 60 empresas tenham-se interessado, só três desenvolveram protótipos: AM General (do grupo American Motors Corporation, AMC), Chrysler Defense e Teledyne Continental. O projeto da Teledyne, baseado no Cheetah da Mobility Technology, daria origem ao Lamborghini LM002 de produção.

 

HMMWV XM998 era a identificação do protótipo, mas o nome Humvee se tornou comum na versão militar; o da civil já aparecia em um modelo inicial

 

Com motor Detroit Diesel V8 a diesel de 6,2 litros em posição central-dianteira, peso de 2.400 kg e capacidade de 1.100 kg, a proposta da AM venceu a concorrência e o governo requisitou mais veículos para testes. Aprovado seu projeto, a empresa foi contratada para fornecer um lote inicial de 2.334 jipes dentro de um plano de 55.000 unidades em cinco anos. A produção tinha início em janeiro de 1985.

 

Com tamanho descomunal, o Hummer usava o motor do Humvee, assim como os recursos de transmissão, suspensão, pneus e até o sistema central de enchimento

 

O HMMWV ou Humvee, como a sigla passou a ser grafada para fácil pronúncia, usava chassi de aço com carroceria de alumínio. O motor e a transmissão automática de três marchas, que usavam montagem elevada em relação ao chassi, estavam praticamente no meio dos quatro ocupantes. A suspensão independente por braços sobrepostos à frente e atrás sustentava as rodas pela parte superior, de modo a elevar as semiárvores e atender ao vão livre exigido.

A tração integral permanente recorria a diferenciais Torsen, dianteiro e traseiro, e um diferencial central com bloqueio: o Humvee podia seguir adiante mesmo com aderência de apenas uma roda ao solo. Os grandes pneus de 37 polegadas de diâmetro eram do tipo que roda furado (run-flat) e, em algumas versões, podiam ser inflados ou desinflados por um sistema central a fim de adequar o veículo a terrenos pedregosos ou com areia. Os freios tinham discos internos, montados junto aos diferenciais.

 

O motor elevado em relação ao chassi era um dos segredos do Humvee, que ganhou fama mundial com seu uso pelos EUA na Guerra do Golfo em 1990

 

O Humvee foi usado pela primeira vez em combates na invasão norte-americana ao Panamá, em 1989, mas foi a Guerra do Golfo (iniciada no ano seguinte) que o tornou famoso mundo afora. Versões diversas foram desenvolvidas, do jipe básico de transporte de soldados e ambulâncias a suportes para mísseis, assim como blindagens, motor turbo e suspensão ainda mais robusta. Ele ainda tem grande uso pelas forças armadas, embora desde 2015 esteja em curso sua sucessão pelo Joint Light Tactical Vehicle (JLTV) fornecido pela Oshkosh.

A Operação Tempestade no Deserto fez a fama do Humvee entre o público, mas o ator Arnold Schwarzenegger pode ser considerado responsável por sua versão civil: após dirigir o jipe militar, ele sugeriu ao presidente da AM Jim Armour que havia ali um sucesso comercial. Em março de 1992 aparecia sua versão para o público, chamada de Hummer — nome que já aparecia nos primeiros protótipos para o Exército.

Seu tamanho era descomunal perto de qualquer utilitário esporte, com 2,20 metros de largura, 1,96 m de altura e 3,30 m de distância entre eixos, embora não pelos 4,69 m de comprimento. Pesava mais de 2,7 toneladas. O motor Detroit Diesel de 6,2 litros com potência de 150 cv e torque de 34,7 m.kgf a caixa automática General Motors eram os mesmos do Humvee, assim como os recursos de transmissão, suspensão, freios e pneus — até mesmo o sistema central de enchimento. Mas o modelo civil ganhava portas de aço com barras contra impactos, bancos e acabamento superiores e isolamento acústico.

 

Lento, desconfortável e com o motor entre os bancos, o Hummer era a antítese do carro de luxo; assim mesmo, tornou-se febre entre as celebridades

 

O Hummer logo caiu nas graças de celebridades de Holywood, atletas famosos e outros endinheirados. Mais caro que um Range Rover V8 4,6, podia ser visto diante dos melhores restaurantes e hotéis, papel impensável por quem o projetou para uso militar. Foram produzidas carrocerias de perua de quatro portas, jipe com capota macia e picapes de duas e quatro portas.

 

 

O teste da revista Car and Driver em 1995 pode explicar esse êxito: “Motoristas de [caminhões] Peterbilts, Kenworths e Freightliners não buzinam para o Hummer. Ninguém mexe com você ao seu volante”. Havia também atributos técnicos: “Desenhado para os ambientes mais severos, ele tem de desempenhar bem em uma variedade de terrenos — desertos, montanhas, selva — por longo período com mínima ou nenhuma manutenção”, explicava em 2005 a revista Off-Road.

Uma versão a gasolina foi oferecida entre 1995 e 1997 com o motor Vortec V8 de 5,7 litros da Chevrolet e caixa automática de quatro marchas, mas seu desempenho não convenceu. “O motor é sobrecarregado e fornece a aceleração de uma baleia encalhada na praia, 0 a 96 km/h em 18,1 segundos. O bloco-pequeno faz o som de que estivesse lubrificado com areia. O espaço de frenagem foi o pior medido desde o Hummer anterior em 1992”, lamentava a Car and Driver.

 

Sua capacidade fora de estrada era quase ilimitada com enorme vão livre, suspensões independentes e sistema de enchimento dos pneus

 

O motor Detroit Diesel passava em 1996 a 6,5 litros e 170 cv e surgia uma versão turboalimentada de mesma cilindrada com 195 cv e 59,4 m.kgf, que cumpria o 0-100 km/h em cerca de 16 segundos. A Motor Trend comparou essa versão a utilitários esporte em 1999: “Ridículo como ele é na cidade (vemos vários deles em Beverly Hills), o Hummer é grande além da razão, lento como uma carroça e ineficiente em ergonomia como qualquer coisa desenhada pelos padrões do governo. Mas é também o único veículo que todos quiseram experimentar. Dirigi-lo quase me fez querer me alistar no Exército”.

A General Motors firmava em 1999 uma cooperação com a AM General com a compra dos direitos sobre a marca e, mais tarde, com aprimoramentos ao produto. Renomeado Hummer H1, o utilitário ganhava controle eletrônico de tração e freios com sistema antitravamento (ABS). O modelo 2000 vinha com novo perfil de traseira e toca-CDs, o quadro de instrumentos mudava para o ano seguinte e a linha 2003 recebia bloqueio eletrônico do diferencial traseiro.

Com mais 10 cv para o motor turbodiesel em 2004, seu desempenho era “adequado para uso em rodovias e excelente no fora de estrada. Seu consumo não é terrível diante do peso do veículo”, avaliava a Off-Road, que acrescentava: “O H1 foi aperfeiçoado em conforto, mas não esconde seu legado militar. Ainda há valentia o suficiente para satisfazer mesmo o mais exigente praticante de fora de estrada”.

 

Depois de melhorias internas, a GM lançava em 2005 o H1 Alpha (fotos externas), com seu motor V8 de 300 cv e mecânica revista, que durou só alguns meses

 

A última evolução do Hummer foi a versão H1 Alpha, lançada em 2005, com motor Duramax V8 turbodiesel da GM (6,6 litros, 300 cv, 72 m.kgf) e transmissão Allison de cinco marchas. Outras alterações eram uso de aços de alta resistência no chassi e melhorias nos diferenciais, direção, sistema elétrico, ar-condicionado e interior. Contudo, a GM não se interessou em seguir o projeto para sua adequação aos limites de emissões poluentes que vigorariam em 2007, preferindo encerrar a produção em junho de 2006.

A marca Hummer manteve os modelos H2 (com chassi derivado das grandes picapes Chevrolet e GMC 2500) e H3 (com chassi da picape média Colorado). Com a crise econômica mundial, a GM colocava a marca à venda e tentava em 2009 negociá-la com a chinesa Tengzhong, negócio que não se concretizou. A Hummer passava à história em fevereiro de 2010.

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