A picape nascida nos Estados Unidos teve seguimento na Ásia, fez sucesso no Brasil e enfim padroniza os mercados
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
As crises do petróleo de 1973 e 1979 foram mesmo decisivas para readequar os hábitos do consumidor norte-americano de automóveis. Com o preço da gasolina nas alturas e a entrada de limites legais para o consumo de combustível (programa CAFE), os grandes carros com motor V8 perderam espaço e chegaram perto da extinção. No caso das picapes, a demanda por modelos mais econômicos levou à criação do segmento médio — compacto para o padrão deles —, que teve na Ford Ranger um dos principais representantes.
Assim como a General Motors com a LUV fornecida pela Isuzu, a Ford estreou nessa categoria com um modelo comprado dos japoneses: a Courier, produzida pela Mazda, marca da qual o grupo norte-americano detinha ações à época. Discreta no estilo e no desempenho, a Courier chegava em 1972 com motor de 1,8 litro a gasolina e potência de 74 cv, transmissão manual ou automática e a grande capacidade de carga de 1.400 kg. O modelo 1977 recebia um 2,3-litros da Ford, fabricado no Brasil, e em 1982 aparecia um Perkins 2,2 a diesel.
Concorrente das picapes também japonesas da Nissan e da Toyota, ela atendia razoavelmente a quem buscava um utilitário econômico. Como curiosidade, o Japão a fornecia sem caçamba, o que evitava o pesado imposto de 25% para picapes conhecido como Chicken Tax ou imposto do frango — uma retaliação comercial dos EUA à França e à Alemanha, que em 1964 haviam elevado tributos sobre o frango exportado pelos norte-americanos. Após a importação a caçamba era acrescentada, o que permitia imposto de apenas 4%.
A antecessora Courier em modelos 1974 (à esquerda) e 1982: produção japonesa, motor 2,3 brasileiro e importação sem caçamba para evitar tributação
Enquanto a GM desenvolvia a própria picape média, que se tornaria a primeira S-10, a Ford trabalhava no projeto da Ranger — ambas concebidas no próprio país, portanto mais adequadas às preferências e ao tipo de uso locais que os modelos fornecidos pelo Japão. A Ranger aparecia nas concessionárias em março de 1982 como modelo 1983, com linhas retas que lembravam as da Série F e permitiam bom coeficiente aerodinâmico (Cx) para o tipo de veículo, 0,45. Seu nome, que significa em inglês o equivalente a um guarda florestal, não era inédito na Ford: fora usado nos anos 70 em uma versão de acabamento da Série F e do Bronco.
Mais leve (a partir de 1.150 kg) e compacta, destinada a aplicações urbanas e serviços menos exigentes, a Ranger mantinha parte dos atributos que levaram a Série F à liderança do mercado. Contudo, a pressa para o lançamento deixou a picape com poucas opções iniciais: cabine simples, tração traseira, dois comprimentos de caçamba (1,5 e 1,8 metro) e dois motores a gasolina, ambos com comando de válvulas no cabeçote e carburador. O de 2,0 litros fornecia 73 cv, ante 80 cv do 2,3 que era exportado de Taubaté, SP. A transmissão manual de quatro marchas equipava ambos, mas o 2,3 podia receber uma automática de três.
Sem a opção V6 que a S-10 oferecia, desempenho não era a prioridade da Ford, como observou em teste a revista Motor Trend: “O número de controle para o programa Ranger foi o consumo em cidade entre 26 e 28 milhas por galão (10,9 e 11,8 km/l), não a aceleração ou a velocidade máxima. Assim, nem o motor 2,0 nem o 2,3 tem grande desempenho”. O teste indicou aceleração de 0 a 96 km/h em 14,8 segundos para a 2,0 manual ante 12,7 s da S-10 V6 automática.
A Ranger chegava em 1982 com motores a gasolina e cabine simples; versões 4×4, V6 e a diesel vinham em seguida; no interior, banco inteiriço ou dois separados
Havia bons atributos, porém: “Compradores de recreação ficarão satisfeitos com seu desempenho. O conforto de marcha e o nível de ruído são muito bons sem carga, mesmo nas seções de piso irregular da pista da Ford. O interior é arejado e agradável, com espaço generoso. Se o banco inteiriço é um pouco apertado para três, os separados da XLS dão conforto excepcional para dois, mas a cabine restringe o ajuste do encosto. Com preço a partir de US$ 6.203, a Ranger é definitivamente competitiva. A S-10 de 1,9 litro custa a partir de US$ 6.270, e mesmo uma Courier básica custa US$ 6.614”.
Mais leve e compacta, destinada a aplicações urbanas e serviços menos exigentes, a Ranger mantinha parte dos atributos que levaram a Série F à liderança do mercado
Com chassi tipo escada e suspensão dianteira independente Twin-I-Beam com molas helicoidais, a Ranger oferecia capacidade de carga modesta — 545 kg ou, com pacote opcional, 725 kg —, mas suficiente para boa parte dos trabalhos. Ainda na linha 1983 a Ford acrescentava opções de tração nas quatro rodas, motor Mazda-Perkins 2,2 a diesel (o mesmo da Courier, com apenas 59 cv) e o primeiro V6, o Cologne de 2,8 litros e 115 cv. O diesel mudava de fornecedor em 1985, passando ao Mitsubishi 2,3 com turbo e 86 cv.
A versão Supercab, com cabine estendida e opção de pequenos bancos traseiros, vinha em 1986. Como usava a caçamba de 1,80 metro e entre-eixos de 3,18 m, a picape ficou bem mais longa. A Ranger ganhava também injeção eletrônica, passando a 140 cv no V6, agora de 2,9 litros. O estado da Califórnia recebia a versão GT com bancos esportivos, rodas de alumínio, mais instrumentos, o motor 2,9 e diferencial autobloqueante. No ano seguinte aparecia a High Rider STX, com altura de rodagem 35 mm maior que nas demais 4×4.
Cabine estendida Supercab, injeção e motor de 4,0 litros ampliavam as opções; a frente mudava em 1989 (foto maior) e depois ganhava grade quadriculada
Uma reestilização frontal vinha em 1989, com desenho que lembrava o da F-150 (e da F-1000 brasileira de 1992), junto de mudanças internas. Os faróis não mais estavam recuados, uma permissão das novas normas do país, e mudavam capô, grade e para-lamas. O motor 2,3 adotava duas velas por cilindro (para menores emissões poluentes) e ignição sem distribuidor, passando a 100 cv, e havia sistema antitravamento (ABS) para os freios traseiros. Esse estranho arranjo se justificava: em picapes, o eixo posterior precisa de muita força de frenagem com carga total e pouca com caçamba vazia, para evitar travamento. O 2,0-litros saía de cena.
Um V6 de 4,0 litros e 144 cv, com opção de caixa automática de quatro marchas, era novidade em 1990. A tração 4×4 podia ter comando elétrico, embora a tradicional alavanca ainda fosse oferecida, e rodas-livres dianteiras automáticas — até então, ao voltar ao modo 4×2, era preciso dar marcha à ré para desacoplar as rodas-livres. No ano seguinte chegavam a versão Sport de cabine simples e o V6 de 3,0 litros e 145 cv, que substituía o 2,9. Em 1992 a adoção de chapas galvanizadas aumentava a resistência à corrosão.
A avaliação da revista Consumer Guide apontou que “mesmo o V6 2,9 impressiona, mas a estrela é o 4,0-litros. Com torque abundante, ele deixa a Ranger divertida de dirigir. É também melhor para rebocar. A de quatro cilindros é aceitável como segundo carro. Os bancos são confortáveis, mas os traseiros da Supercab são mais adequados a crianças. A Ranger tem qualidade e refinamento em um veículo agradável e fácil de conviver”.
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Os derivados
A partir do chassi e da mecânica da Ranger, a Ford desenvolveu utilitários para fins variados, a maior parte nos Estados Unidos. O primeiro foi o utilitário esporte Bronco II, em 1983, que voltava às origens do jipe de 1966 — o Bronco de 1978 tornara-se um grande SUV. O chassi da picape 4×4 de primeira geração foi encurtado para receber a carroceria de duas portas. O modelo foi feito até 1990.
A minivan Aerostar (míni para os padrões norte-americanos, claro) aparecia em 1986 como resposta à Dodge Caravan e outros modelos da Chrysler. A plataforma era outra, mas entre 1985 e 1997 foram usados os mesmos motores de 2,3, 2,8, 3,0 e 4,0 litros da Ranger, com tração traseira ou nas quatro rodas.
Outro descendente da picape foi o SUV Explorer, em 1991. O modelo com três ou cinco portas derivou da Ranger de primeira geração, com o qual partilhava chassi, mecânica e parte do interior. Contudo, a ampla remodelação de 1996 trouxe-lhe certa independência: foi o primeiro utilitário da marca com suspensão dianteira de braços sobrepostos (que a Ranger ganharia em 1998) e abriu espaço para o motor V8 de 4,95 litros no cofre. Essas duas fases do Explorer chegaram ao mercado brasileiro.
Ele também foi vendido nos EUA pela Mazda, como Navajo, e ganhou em 1997 uma variação pela divisão mais refinada Mercury sob o nome Mountaineer.
Se a Ranger de cabine dupla não migrou da América do Sul para a do Norte, os EUA receberam sua alternativa com a Explorer Sport Trac, em 2000. Era uma combinação do chassi mais longo da Ranger, a cabine do SUV Explorer e uma caçamba feita de compósito. Teve até versão V8 com o 4,6-litros modular, de 2006 em diante, algo que a Ranger nunca ofereceu. Ficou em linha até 2010.