Com projetos ousados ao lado de lançamentos para os
Estados Unidos, o principal salão do país já tem mais de 100 anos
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
O carro que colocaria a América sobre rodas — o Ford Modelo T — nem havia sido lançado quando, entre 9 e 15 de dezembro de 1907, a cidade de Detroit, no estado norte-americano de Michigan, sediou pela primeira vez um salão de automóveis. O evento foi organizado pela Detroit Area Dealer Association (DADA), ou associação de concessionárias da área de Detroit, formada no mesmo ano.
Aqueles 30 veículos (sendo 22 com motor a gasolina, sete de propulsão elétrica e um a vapor) e 17 expositores, reunidos no Beller’s Beer Garden para formar o Detroit Auto Show, podem significar pouco diante da grandeza dos eventos de hoje, mas deram o pontapé inicial para que o automóvel ganhasse importância no cotidiano dos Estados Unidos.
O popular Ford Modelo T (em cima), o Type C Classic Six da Chevrolet
e o salão em 1910 (centro) e 1929; no alto, o Dodge Viper de 1989
Fazia então só 12 anos que Charles Brady King havia dirigido um carro pela primeira vez em Detroit. Foi ali que surgiu a primeira concessionária de veículos do país, inaugurada em 1898 por William E. Metzger, que um ano mais tarde fazia uma apresentação de automóveis — elétricos e a vapor, nenhum a gasolina — a um público ainda não acostumado às “carruagens sem cavalos”.
A corrida pelo espaço inspirava que as
fábricas adotassem “rabos de peixe”
e escapamentos que lembravam turbinas
Também em 1899, Ransom E. Olds transferia sua empresa Olds Motor Works — mais tarde Oldsmobile, uma divisão da General Motors — de Lansing para Detroit, tornando-se o primeiro construtor de automóveis na cidade. Quando aconteceu o salão, a Ford já existia (desde 1903), assim como um grande número de pequenos fabricantes baseados em meios artesanais. A General Motors como corporação viria em 1908 e a Chrysler, a outra das “três grandes” dos EUA, apenas em 1925. Todas estabeleceram-se na região de Detroit (a Ford em Dearborn, ali perto), que conquistaria o título de capital mundial do automóvel.
Em 1910 o estado de Michigan contava com 42 unidades de fabricação de carros, contra 31 de Indiana e 29 de Ohio — no total eram 116 por todo o país. Já havia veículos de 44 marcas no salão daquele ano, que se mudava para um ambiente maior, o Wayne Gardens. Em 1924 passava ao Billy Sunday Tabernacle, mantendo-se no local até que em função da Segunda Guerra Mundial, em 1942, a produção de automóveis fosse interrompida.
O Cadillac V16 de 1930 trazia luxo e potência em modelo inoportuno;
embaixo, a partir da esquerda, os estandes da Pontiac em 1935,
da Chevrolet em 1938 e da Oldsmobile, com carro inclinado, em 1939
Nos anos 30 eram apresentados ali mais de 300 carros, alguns de fabricantes em atuação até hoje, outros de empresas que sucumbiram com o tempo, como DeSoto, Hupmobile, LaSalle, Nash, Studebaker e Willys. No começo da década, carros excessivos em luxo e motorização como o Cadillac V16 não poderiam estrear em pior momento: com a quebra da bolsa em 1929 e a Grande Depressão que se seguiu, não apenas as vendas de modelos caros despencaram, como usá-los passou a ser mal visto em uma época de multidões sem trabalho.
Foi também nos anos 30 que começou a influência dos conceitos de aerodinâmica nos carros norte-americanos, com destaque para o ousado Chrysler Airflow, que pagou o preço de seu pioneirismo com baixa aceitação pelo público; o Lincoln Zephyr foi um dos que seguiram a fórmula. No evento de 1939 a Ford, detentora dessa marca, estreava a divisão Mercury.
Terminado o conflito em 1945, os fabricantes retomaram os antigos modelos e correram às pranchetas para desenhar carros realmente novos. O primeiro a chegar ao mercado foi o Studebaker Champion 1947, anunciado pelo mote “First by far with a postwar car”, ou a primeira com um carro pós-guerra. Mas foi preciso aguardar até 1952 para que o Salão de Detroit ressurgisse, em um momento de prosperidade econômica e grandes perspectivas para os norte-americanos.
Com o Thunderbird (em cima e no estande) a Ford respondia ao
Corvette em 1954; a elegância simples do Chevrolet Bel Air de 1955
(centro) contrasta com os excessos do Cadillac Eldorado 1959
Todos queriam um novo carro e, quanto maior e mais impressionante, melhor. Nos anos seguintes, a corrida pelo espaço entre EUA e União Soviética inspirava as fábricas a adotar “rabos de peixe”, escapamentos que lembravam turbinas, lanternas e para-choques com pontas ameaçadoras. No evento de 1954 a Ford apresentava sua resposta ao Chevrolet Corvette lançado no ano anterior: o Thunderbird, um conversível de dois lugares com motor V8, algo que a GM só ofereceria no ano seguinte. Também em 1955 o Chevrolet Bel Air esbanjava elegância no formato de cupê hardtop, sem coluna central. Foi um sucesso.
Enquanto a Europa se recuperava da destruição da guerra, seus fabricantes apareciam pela primeira vez no evento em 1957, quando Mercedes-Benz, Jaguar, Porsche e Volvo participaram. O mercado do lado de cá do Atlântico já representava tal importância para o Velho Mundo que alguns modelos eram desenvolvidos para atender ao gosto da América, como o Mercedes 300 SL com “asas de gaivota”, o roadster BMW 507 e a versão Speedster do Porsche 356.
A influência norte-americana no estilo dos carros europeus, por sua vez, estava evidente em modelos como o Mercedes “Fintail” e o Peugeot 404, lançados entre o fim dos anos 50 e o começo dos 60. O Cadillac Eldorado de 1959, um enorme conversível de 6,1 metros com “rabos de peixe” de mais de um metro de altura, representava o ápice dos exageros de estilo de Detroit. No entanto, o público se cansou dos excessos e os carros voltaram-se a linhas mais convencionais.
O Pontiac GTO (em cima) inaugurou a classe dos “carros musculosos”
em 1964; embaixo, o conceito Ford Gyron de 1961, o Oldsmobile
Toronado de tração dianteira e o estudo Ford Mach I, ambos de 1966
Em 1960 o salão mudava-se pela última vez para o Cobo Conference & Exhibition Center, onde ainda é realizado. No ano seguinte, em meio a comportados modelos de produção, a Ford expunha o inusitado conceito Gyron, com duas rodas, dois lugares lado a lado e estabilização por giroscópios — quando parado, pequenas rodas o apoiavam para manter o equilíbrio. O acesso era feito pela bolha superior que formava a cabine.
Durante os anos 60, os visitantes do salão viram a indústria lançar carros menores — Chevrolet Corvair, Ford Falcon e o Valiant da Chrysler foram exemplos — para enfrentar a concorrência dos europeus. Depois, ela aumentou o desempenho dos automóveis a passos largos, o que deu origem em 1964 à categoria dos “carros musculosos”, inaugurada pelo Pontiac GTO. Eram modelos compactos com grandes motores V8, em alguns casos com potência bruta de mais de 400 cv.
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O Dodge Challenger (em cima) e o Chevrolet Camaro (à esquerda)
seguiam a proposta de “carro-pônei” do Mustang; o Cadillac Seville
(centro) e a picape Dodge Li’l Red Truck eram sinais dos tempos
Chevrolet Chevelle, Dodge Charger, Ford Torino, Oldsmobile 4-4-2 e Plymouth Road Runner estavam entre esses bólidos das ruas, que despertaram a pressão das companhias de seguro por padrões de segurança e potências mais comedidas. Havia também a classe dos carros-pônei, simbolizada pelo Ford Mustang e que contava com AMC Javelin, Chevrolet Camaro, Dodge Challenger, Plymouth Barracuda e Pontiac Firebird. Outro destaque do período foi o Oldsmobile Toronado, um grande cupê que trouxe de volta a tração dianteira, abandonada no país nos anos 30 — e associada a um V8 de 7,0 litros.
Nos anos 70 o cenário estava diferente. Normas de emissões poluentes amarravam o vigor dos motores, fazendo com que grandes V8 desenvolvessem menos de 150 cv pelo novo padrão líquido. Com a primeira crise do petróleo deflagrada em 1973, surgiram limites de consumo de combustível para a linha de cada fabricante e o consumidor passou a exigir veículos menores, mais leves e mais econômicos.
Até marcas de luxo como a Cadillac tiveram de aderir: o Seville lançado em 1975 era 70 centímetros mais curto e pesava 360 kg a menos que o enorme DeVille. Uma tentativa de adotar motor a diesel, feita pela GM com um V8 da Oldsmobile, fracassou a ponto de deixar uma duradoura imagem negativa desses propulsores no público.
Ousadia nos anos 80: o esportivo Corvette Indy (em cima) com
motor central, o recordista Oldsmobile Aerotech (à esquerda),
o curioso Plymouth Slingshot e o Ford Taurus de produção (1986)
Como os utilitários seguiam regras de economia bem mais brandas, nascia ali um forte interesse por picapes com grandes motores — mais tarde, também utilitários esporte — como carros de uso diário, forma encontrada pelos norte-americanos de manter muitos cavalos à disposição do pé direito. Os anos 80 trouxeram a determinação por melhor aerodinâmica, tida como uma das receitas para reduzir o consumo sem afetar a potência dos motores.
O Volkswagen Concept One, origem do
New Beetle, foi a deixa para outras marcas
fazerem renascer carros do passado
No salão de 1985 aparecia o Probe V, quinto carro-conceito da série da Ford, com o excepcional Cx 0,137 e formas tão fluidas que até hoje os carros ainda não se parecem com ele — mas se pode notar algum parentesco nas linhas suaves do Taurus, lançado um ano depois.
Menos futurista, mas também ousado era o Corvette Indy de 1986, com motor V8 central desenvolvido pela Lotus, suspensão ativa, tração e direção nas quatro rodas. No ano seguinte a mesma GM revelava o Oldsmobile Aerotech, que superou 400 km/h em recordes de velocidade, e o não menos futurista Pontiac Pursuit. Na edição de 1988 um dos destaques era o conceito Plymouth Slingshot, da Chrysler, com cabine em forma de bolha e para-lamas bem salientes.
Lexus (em cima) e Infiniti foram lançadas em Detroit em 1989;
embaixo, conceitos Chrysler 300M, Mercedes F-100 e Hyundai HCD-I
Apesar de sua relevância no cenário local, que ele disputava sobretudo com os eventos de Nova York, Chicago e Los Angeles, o Salão de Detroit buscava a consagração internacional: era preciso atrair os fabricantes estrangeiros para apresentar ali grandes lançamentos mundiais, não apenas novidades para o mercado norte-americano.
Entre 1987 e 1988, a organização obteve o apoio da associação local de concessionárias para fazer brilhar o evento, o que começou pela duplicação do espaço útil no Cobo Center. Grupos de revendedores passaram a visitar os grandes salões mundiais (Frankfurt, Genebra, Paris, Tóquio) para buscar soluções. Os fabricantes locais e estrangeiros firmaram seu apoio, que no caso das japonesas Toyota e Nissan representou lançar no evento as divisões de prestígio Lexus (com o LS 400) e Infiniti (com o Q45), de início restritas aos EUA.
Em janeiro de 1989, essas e outras primazias ganhavam as atenções no primeiro North American International Auto Show (Naias) ou salão internacional do automóvel norte-americano. Da indústria local, o destaque ficava por conta de ousados carros-conceito como o Dodge Viper, um superesportivo com motor V10 de 8,0 litros e sem amenidades de conforto — quase um sucessor para o clássico Shelby Cobra dos anos 60 —, que em três anos chegaria à linha de produção.
Conceitos em 1993, Porsche Boxster (destaque) e Plymouth Prowler
(esquerda) chegavam às ruas em três anos; o Ford Indigo de 1996
tinha motor V12; com a Nomad (1999) a GM inspirava-se no passado
Também da Chrysler era o imponente conceito 300 de 1991, que sugeria o retorno da antiga “série letra” com formas arredondadas, TV para o banco traseiro e o motor do Viper. No mesmo ano a Mercedes-Benz levava o projeto F-100, uma grande perua repleta de inovações: banco do motorista no centro, teto com células solares para obter energia, controles por voz. A Chevrolet exibia em 1992 o Corvette Sting Ray III, proposta de novo desenho para o carro esporte.
No ano seguinte, outra alemã — a Porsche — ganhava a cena com o conceito Boxster e a Plymouth revelava o Prowler, ambos bem parecidos com os modelos de produção que sairiam em três anos. O Ford Indigo, de 1996, associava estrutura de fibra de carbono e motor V12 de 6,0 litros e 435 cv a um desenho bastante original. A Volkswagen também escolhia o evento para mostrar em 1994 o Concept One, uma interpretação moderna do Fusca que se tornaria o New Beetle quatro anos mais tarde.
Foi a deixa para outras marcas apostarem na onda retrô, pela qual carros marcantes do passado parecem renascer com alguns traços atuais e mecânica do presente. Nessa tendência vieram a Chevrolet Nomad de 1999, com plataforma do Camaro e inspiração na perua de 1955; o Ford Thunderbird do mesmo ano, que chegaria às ruas com linhas que remetiam aos anos 50; o Jaguar F-Type de 2000, inspirado no belíssimo E-Type; e o Chevrolet SSR do mesmo evento, picape com jeito de anos 50 que entraria em produção depois de três anos.
O Ford GT40 (em cima) remetia a Le Mans e entraria em produção;
embaixo os conceitos Jaguar F-Type, Range Rover Stormer e Camaro
Mas nem só pela nostalgia Detroit seguiu atraindo atenções. Foi nesse salão que a Lexus estreou em 1998 o RX 300, utilitário esporte com rodar de automóvel, e que a Cadillac apresentou no ano seguinte o roadster Evoq, com a filosofia de estilo baseada em arestas e ângulos que se estenderia a seus modelos de produção na década seguinte.
A Ford brilhava em 2002 com o GT40, uma reinterpretação do vencedor de Le Mans dos anos 60, que logo entraria em série (como GT) para celebrar os 100 anos da marca. O Range Rover Stormer (2004) antecipava o modelo Sport de linha e, em 2006, tanto o Chevrolet Camaro quanto o Dodge Challenger indicavam o retorno dos “pôneis” do passado para competir com o Mustang.
Reconhecido em 1992 pela Oica — organização internacional dos fabricantes de automóveis, que atua junto aos salões mais importantes —, o Salão de Detroit ganhou apelo e se tornou um dos maiores. Nas duas últimas décadas, suas novidades têm despertado o interesse da imprensa e do público nos quatro cantos do planeta.
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