Em mais de um século o salão alemão — de início em Berlim, depois em Frankfurt — lançou centenas de carros marcantes
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
O evento alemão IAA, Internationalen Automobil-Austellung (Salão Internacional do Automóvel), está em uma posição curiosa entre os maiores do mundo: iniciado em 1897, pode ser considerado o mais antigo dos salões, mas só se for incluído o período anterior a seu estabelecimento em Frankfurt. Em caso contrário, o título vai para o de Paris, que começou no ano seguinte.
A primeira edição mal podia ser chamada de salão: sediada no Hotel Bristol, em Berlim, teve um só dia e expôs oito veículos, que aos poucos despertavam o interesse da população. Embora modesto no tamanho, foi promissor: daquele ano até 1911 a Alemanha teria salões de automóveis anuais e, entre 1905 e 1907, duas vezes por ano. O Kaiserliche Automobil-Club (Automóvel-Clube Imperial), em Berlim, tornou-se um importante ponto de encontro onde príncipes e nobres debatiam os rumos das “carruagens sem cavalos”. Com as linhas de produção, fabricar automóveis deixava de ser uma atividade artesanal, que resultava em preços inacessíveis. Em 1912 o país já contava com 124 fabricantes de veículos que somavam 36 mil funcionários. Dois anos depois a oferta superava 200 modelos de carros, sem contar os mais de 80 tipos de caminhões. Mas então veio a Primeira Guerra Mundial e a produção foi voltada a veículos militares.
Em 1921, três anos após o encerramento do conflito, Berlim voltava a sediar o evento. A 14ª edição do IAA reunia 67 fabricantes com 90 automóveis e 47 caminhões. O salão seguinte ocorria dois anos depois, em meio a um cenário de inflação, e introduzia os caminhões a diesel — o motor, patenteado 30 anos antes, estava até então restrito a navios e aplicações estacionárias. O crescente número de expositores já levava à divisão do evento em duas áreas, uma para carros, outra para veículos comerciais.
Realizado em Berlim até 1939, o salão apresentou carros de luxo e populares, tanto de marcas alemãs quanto das estrangeiras
Mas a Alemanha ficaria isolada do mundo em termos de salões até 1926. A RDA (Reichsverband der Automobilindustrie, Associação da Indústria Automobilística do Império) recebeu restrições da associação internacional de fabricantes, devido à guerra, e durante esse período não houve carros estrangeiros no IAA nem veículos alemães em salões no exterior. Depois da 21ª edição, em 1928, houve uma lacuna de dois anos por causa da recessão mundial que se seguiu à quebra da bolsa de Nova York. Mas em 1931 ele retornava com grande êxito e recebia 295 mil visitantes. O DKW F1 fazia então sua estreia. Em edições seguintes foi palco para lançamentos importantes como o Mercedes-Benz 500K (1934), conversível dotado de compressor no motor V8, e o BMW 328 (1936), roadster que obteve mais de 200 vitórias nas pistas em quatro anos.
No IAA de 1963, um dos mais marcantes lançamentos de sua história: o do Porsche 901, com motor de seis cilindros opostos e 130 cv, que logo se tornou 911
O último IAA antes da Segunda Guerra Mundial aconteceu em Berlim, em 1939, a cerca de seis meses do conflito. Nessa 29ª edição, que recebeu o público recorde de 825 mil visitantes, estavam duas unidades do KdF-Wagen — Kraft durch Freude, ou Força através da Alegria, um dos lemas do partido nazista. O curioso carro em forma de besouro ficaria famoso nos quatro cantos do mundo como Volkswagen. Entretanto o início da produção, previsto para outubro daquele ano, teve de ser adiado por longo tempo.
O pós-guerra
A destruição de numerosas fábricas alemãs tornou difícil para aquela indústria retomar sua produção e desenvolver novos carros. A VDA (Verband der Automobilindustrie, Associação da Indústria Automobilística Alemã), fundada em 1946, precisou de mais quatro anos para organizar o primeiro salão germânico após o conflito. Só em 1950 acontecia o 33º IAA, com 270 expositores alemães e estrangeiros e 382 mil visitantes. No ano seguinte a produção local já havia alcançado o patamar anterior à guerra, em um cenário promissor.
Nos anos 50 a Alemanha alcançava o segundo lugar na produção mundial, um êxito que as atrações do Salão de Frankfurt espelhavam
E foi em 1951, em abril, que o evento se mudou para Frankfurt e se tornou bienal. Entre as atrações estavam o Mercedes-Benz 220/300, que serviria ao chanceler alemão Konrad Adenauer e seria apelidado com tal sobrenome; o BMW 501, primeiro carro de luxo da marca; e o Porsche 356, já no mercado desde 1948, que ganhava motor de 1,3 litro. Em setembro ainda ocorria o último IAA em Berlim. Nos anos seguintes, o crescimento da indústria automobilística alemã levou-a a superar em produção a francesa, em 1954, e a inglesa dois anos depois.
O salão de 1953 exibia o DKW Sonderklasse, modelo que chegaria ao Brasil três anos depois como a perua DKW-Vemag Universal; o popular Mercedes 180 “Ponton”, cuja versão a diesel faria grande sucesso entre os taxistas, em uma tradição da marca que se mantém até hoje; e a primeira geração do Opel Rekord. Dois anos depois, a esportividade estava em alta. A BMW lançava o 503 e o charmoso roadster 507, este com motor V8 de 3,2 litros e 160 cv; a inglesa MG mostrava o MG A, sucessor da longeva série T; e a Porsche estreava a versão Carrera do 356, com motor de duplo comando e 100 cv, que usava pela primeira vez o nome hoje tão conhecido.
Em 1956 os germânicos produziam, pela primeira vez, mais de um milhão de veículos: só estavam atrás dos Estados Unidos. No ano seguinte apareciam no IAA o Auto Union 1000 Sp — o “Ford Thunderbird alemão”, com inspiração norte-americana no estilo e versões cupê e conversível —, o pequeno Prinz da NSU e o Rekord P1 da Opel. No fim da década, em 1959, o salão atingia 700 expositores e 870 mil visitantes, que viram novidades como o pequeno BMW 700, com motor traseiro de cilindros opostos e arrefecimento a ar, a exemplo do Volkswagen e do Porsche, e cujo sucesso seria fundamental para a marca. Havia ainda o Mercedes da série conhecida por “Fintail”, cujos para-lamas traseiros lembravam os de carros norte-americanos da época; e o 356 B da Porsche.
Modelos históricos como o Porsche 911 (no início, 901) foram revelados ao mundo no evento germânico nas décadas de 1950 e 1960
Melhor que isso, só o recorde de visitação — 950 mil — em 1961, que levaria 16 anos para ser superado. Foi quando surgiram o BMW 1500 “Nova Classe”, sedã médio que dava início à linhagem seguida pelo Série 3; o cupê 3200 CS, com desenho de Bertone e motor V8; a família Volkswagen Typ 3, semelhante aos nacionais “Zé do Caixão”, TL e Variant, ainda com propulsor traseiro “a ar”; e o Renault 4, um pequeno francês com tração dianteira.
O início da lenda
No IAA seguinte, de 1963, acontecia um dos mais marcantes lançamentos de sua história: o do Porsche 901, com motor de seis cilindros opostos, 2,0 litros e 130 cv. Como a Peugeot havia registrado todos os números de três algarismos com o zero no centro, o 901 logo tornou-se 911. Naquela edição também foram lançados o NSU Spider, conversível que usou pela primeira vez o motor rotativo Wankel, e o Mercedes-Benz 600. O enorme sedã (com 6,2 metros na versão Pullman e até oito lugares), um dos carros mais luxuosos e caros de seu tempo, tinha motor V8 de 250 cv e suspensão pneumática.
Em 1965 era a vez do Audi, que marcava o retorno da marca desde a guerra, e do conceito Experimental GT da Opel, que após quatro anos daria origem ao cupê GT de produção. Àquele tempo era incomum que um “carro de sonho” chegasse ao mercado. A Opel voltava à cena no IAA de 1967 com uma nova geração do Kadett, linha iniciada em 1936, e o Commodore, versão de luxo e com seis cilindros do novo Rekord. Este último assumira, dois anos antes, as formas básicas com que seria lançado no Brasil em 1968 o Opala.
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