Nosso parque fabril de veículos e autopeças, que já foi o terceiro do mundo, cada vez mais se presta à especulação imobiliária
A notícia de que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) não firmou acordo com a CAOA para a aquisição da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo, SP, com a antevisão do galpão abandonado, suscitou-me sentimentos que vão da decepção à curiosidade. Já escrevi sobre o caráter itinerante da indústria, em geral, e da automobilística, em particular. A consciência científico-profissional de um evento ou uma tendência não implica que nossos sentimentos sejam obliterados. Nada disso: eles podem até ser exacerbados.
Não vou negar que, na infância e juventude, tinha orgulho de nossa indústria de automóveis que, considerando a cadeia de suprimentos, chegou a ser a terceira maior do mundo no início dos anos 1980. Era um período de desenvolvimentismo e a fase vivida chamava-se de substituição de exportações. Isso mesmo, substituição de exportações, pois a substituição de importações encerrara-se funcionalmente no fim dos anos 1960. O Brasil lançava-se como grande exportador de manufaturados.
Empresas nacionais forneciam para o mundo inteiro, pois os processos produtivos não diferiam muito entre os países e a renda do trabalhador era bem menor aqui
Muitos criticavam ao afirmar que se estava exportando mão de obra barata. É verdade, pois os processos produtivos não diferiam muito entre os países então considerados centrais e os tidos como periféricos. Em outras palavras, em horas-homem, o necessário para produzir um automóvel aqui ou na Alemanha variava somente 10% em favor da indústria na Europa. Isso era altamente compensado pela renda do trabalhador, que era 70% menor no Brasil. Assim, empresas como Freios Varga, Cofap e Metal Leve forneciam conjuntos completos para o mundo inteiro.
Os anos 1980 caíram como uma bomba porque, ao mesmo tempo em que vivíamos restrições econômicas, passávamos por restrições institucionais deletérias como a Lei Brasileira de Informática. Ao criar uma reserva de mercado para empresas nacionais do setor, a lei acabou por impedir a modernização de nossos produtos e, principalmente, de nosso parque industrial. Ao mesmo tempo, no resto do mundo, havia programas que se intitularam de “automação já”. A Volkswagen pretendia que suas fábricas pudessem trabalhar com as luzes apagadas.
Mais tarde, viu-se que a mão de obra continuava imprescindível e a tentativa foi abortada, mas o caminho desviou-se inexoravelmente do trilhado pela indústria brasileira de automóveis. Outras indústrias, com cadeia de suprimentos menos complexas, conseguiram modernizar-se, mas a de automóveis não. Em 1990, quando Fernando Collor assumiu a presidência da República, tínhamos carros velhos, desprovidos de tecnologia embarcada, caros e fabricados por processos obsoletos. Em outras palavras, nossa indústria foi expurgada do mercado mundial. Os carros, na verdade, eram a ponta do iceberg.
A Lei Brasileira de Informática desatualizou a cadeia produtiva como um todo, de mamando a caducando. Nossas fábricas de peças e dispositivos passaram a um fundo de quintal em ponto gigante. Aos poucos, as empresas de capital nacional foram vendidas, quando não fechadas, em função da importação de bens mais elaborados e modernos, destinados a suprir as necessidades de carros mais modernos e elaborados. E que fim levou tantos empresários? Eram milhares deles. Teriam caído todos na miséria? De que passaram a viver?
Fundos imobiliários
O Plano Real, instituído em 1994 na presidência de Itamar Franco, ajudou a impedir que fossem todos à bancarrota no que tange à fortuna pessoal. É que, com a estabilização monetária, o mercado financeiro pôde lançar fundos imobiliários que assumiram os galpões, ora para serem transformados em conjuntos de torres de moradia, ora metamorfoseando-os em shopping-centers — caso do Mooca Plaza, erguido a partir da antiga fábrica da Ford no bairro do Ipiranga, construída em 1953 e desativada em 2000.
Esses galpões não eram meras caixas de concreto armado cobertas por telhas: eram verdadeiras fortalezas. A Volkswagen, por exemplo, conta com prensas de 15.000 kN, impacto três vezes maior que o mínimo necessário a uma pista de pouso em aeroporto internacional. Aos olhos dos fundos imobiliários, porém, não passam de área coberta destinada à especulação. Eles podem ser usados para logística, se estiverem próximos aos portos ou aeroportos; ou ao mercado de varejo, se próximos a bairros de moradia; talvez destruídos para a construção de muitos apartamentos. Indústrias, nunca mais serão.
A aposentadoria de um capitão de indústria encerra um ciclo que pode ter levado muitas gerações para se concretizar — é um caminho sem volta
A maior prova disso é a composição da diretoria da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), cujos membros participam das administradoras dos maiores fundos imobiliários, incluindo empresas de avaliação de ativos em âmbito internacional. Sim, esses fundos atraem capital estrangeiro, mas não para investimento — e sim para aquisição de ativos imobiliários, cujo aluguel fará parte do rendimento dos antigos capitães de indústria.
É importante entender que mesmo essa atração não traz dinheiro. Quando um fundo desses começa a operar no País, adquire ativos pagando-os com quotas do próprio fundo, ou seja, há uma transferência de patrimônio sem que ninguém pague ou receba um centavo em dinheiro. Para o fluxo ficar mais claro, um industrial fecha ou vende sua fábrica de autopeças, mas mantém os imóveis que podem ou não ser alugados pelos adquirentes.
Num caso ou noutro, a fim de dar liquidez ao patrimônio do ex-industrial, ele entrega o imóvel, em troca de quotas, a um fundo imobiliário que se encarrega de administrá-lo, pagando-lhe uma parcela dos rendimentos oriundos das atividades exercidas no galpão. A troca por quotas facilita as disputas por herança, permitindo que os descendentes vivam com gordos rendimentos, sem arriscarem-se e, sobretudo, sem jamais voltarem a investir na indústria. A aposentadoria de um capitão de indústria, portanto, encerra um ciclo que pode ter levado muitas gerações para se concretizar. É um caminho sem volta.
Talvez a visão do galpão da Ford sem fabricação de automóveis não enseje pesar. Ele continua perto do maior porto da América Latina e servido pela maior infraestrutura logística do país. Só que não será somente ele a ficar vazio: muitos fornecedores locais também serão afetados. Quem sabe, São Bernardo do Campo, aquela que um dia foi apelidada de “Detroit brasileira”, venha a ser a capital logística do Brasil.
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