Os carros foram parte do entretenimento, até que as mudanças da mídia tornaram mais barato ao fabricante alcançar o público
Durante a reclusão, há os que enchem o tempo com música, outros com filmes, outros — como eu — com leituras. Mantenho minha média de um livro a cada dois dias, sendo um técnico de História, Economia, Sociologia ou Ciência Política, alternado com um de assuntos gerais, que vão da mecânica aos romances. Só que não consigo apenas ler. Graças à internet, sempre que, num livro, encontro menção a um automóvel, tenho de ir à rede pegar seus dados. Foi assim que encontrei o Peugeot Type 3 Vis-à-Vis, tido como o primeiro carro a vir para o Brasil.
O fato é que os carros estão presentes na literatura desde o início do século passado. São obras que vão de clássicos como O Grande Gatsby de Scott Fitzgerald a Caminhos Cruzados de Érico Veríssimo, passando por best-sellers como As Vinhas da Ira de John Steinbeck. Criou-se toda uma imprensa especializada, que parte da literatura técnica e chega aos consumidores finais a partir de periódicos, outrora disputados mensalmente nas bancas de jornais.
Além dos carros no cinema, os fabricantes patrocinam de concursos de beleza a reality shows, passando por programas cotidianos como novelas e telejornais
Mas os carros não estão somente nos livros. Estão no cinema, como em Se Meu Fusca Falasse, Grand Prix, Velozes e Furiosos e muitos outros. Quem não se lembra do Aston Martin de James Bond? Estão na televisão, como em Carga Pesada. Houve até carros mocinhos e carros bandidos, como em Super Máquina dos anos 1980. O fato é que carros ajudam a vender entretenimento e entretenimento ajuda a vender carros. O exemplo mais emblemático de merchandising na TV é Rota 66, série dos anos 1960 em que dois rapazes viajam por todos os estados norte-americanos em um Corvette. Mas houve outros, chegando ao ridículo, como O Fugitivo, em que absolutamente todos os carros eram Ford Galaxie.
Podemos até afirmar que carros são um entretenimento em si mesmos, pois nos ajudam a passar o tempo, seja lavando o nosso próprio aos fins de semana, seja assistindo uma corrida de Fórmula 1. Será que alguém já mensurou o tamanho do mercado de entretenimento baseado nos automóveis?
Como se não bastasse, pelo gigantismo, os fabricantes de carros patrocinam eventos que vão dos concursos de beleza aos reality shows, passando por programas cotidianos como novelas e telejornais. É bem verdade que a proibição de propagandas de todas as espécies envolvendo cigarros e bebidas mudou, radicalmente, a composição do faturamento de mídia e os automóveis ocuparam em parte esse espaço. Em parte porque a demanda por espaço nos meios de comunicação diminuiu, com a saída dos produtores de substâncias nocivas ou ambientalmente indesejáveis, o que reduziu o preço do espaço de mídia, ensejando a entrada de segmentos menos pujantes.
Nesse quesito, os esportes a motor foram os mais prejudicados, pois eram justamente os fabricantes de bebidas alcoólicas e cigarros os grandes patrocinadores de equipes e eventos mundiais como Fórmula 1, Stock Car, Fórmula Indy, entre tantas outras. Daí equipes ligadas aos grandes fabricantes terem-se sobressaído em prejuízo das equipes especializadas como Lotus, McLaren e Williams. Isso não impediu que esse mercado se mantivesse em alta, haja vista que a Liberty Media investiu US$ 8 bilhões na aquisição dos direitos de organização da Fórmula 1.
Migração para o digital
Mas nem tudo são flores. A internet inaugurou outro meio de comunicação que abrange, com custo infinitamente menor, todas as formas de entretenimento até então conhecidas. Revistas especializadas deixaram de depender da indústria gráfica e dos sistemas de distribuição, com toda a logística envolvida, obtendo uma capilaridade inaudita. As ferramentas de edição popularizaram-se a ponto de ser possível criar ambientes de comunicação, com qualidade bastante profissional, com investimento mínimo. A merchandising migrou do automóvel da grande mídia para plataformas digitais como Google, Facebook e Youtube, terceirizando o papel dos profissionais de mídia, tão importantes nas empresas tradicionais de propaganda.
Antigamente, eram esses profissionais que se encarregavam de distribuir a verba de veiculação, otimizando seu alcance. Eles usavam instrumentos como o IVC (Instituto Verificador de Circulação, hoje Instituto Verificador de Comunicação) para mídia impressa e o Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública) para rádio e TV. Hoje, apesar da persistência desses institutos, os algoritmos determinam o destaque que se dá ao conteúdo, ao mesmo tempo em que distribui a remuneração à imprensa eletrônica. Elas fazem o papel de mesclar propaganda e conteúdo da forma mais racional possível.
Os algoritmos não medem a qualidade do que se publica: todos na internet, bons ou ruins, claros ou obscuros, competem por um mesmo bolo de dinheiro
Antigamente, quando se abria uma Quatro Rodas ou Auto Esporte, encontravam-se anúncios de bebida, cigarros e moda masculina, reforçando a ideia de que os vários setores interdependem-se. Hoje, seja por questões legais, seja pelo baixo custo, podem-se encontrar propagandas das mais inesperadas — cursos de Inglês, empresas de turismo, lojas de departamentos online — em um portal sobre carro. A consequência disso é um progressivo distanciamento entre a indústria e a mídia especializada.
Antes, os editores das principais revistas confundiam-se com o pessoal técnico ou de competição da indústria, de onde poderiam até ser oriundos. Agora, mesmo que a mídia realmente especializada continue sendo convidada para eventos e obtendo amostras para testes, encontram-se canais de oficinas e youtubers independentes produzindo muito conteúdo — às vezes rico e interessante, outras vezes não verificável, quando não errado mesmo. O fato é que os algoritmos não medem a qualidade do que se publica, somente o número de acessos segmentado pelo perfil do leitor, incluindo localização, idade, sexo e nível educacional. Todos os que publicam na internet, bons ou ruins, claros ou obscuros, competem por um mesmo bolo de dinheiro.
O automóvel assumiu uma participação jamais vista nos negócios humanos, independentemente de sistemas econômicos, políticos ou tecnológicos. Ele está tão entranhado na humanidade que é impossível determinar se somos nós que o usamos, ou se é ele que nos usa.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars