Uma indústria pujante operando sem sustos é a base de uma economia com o tamanho da brasileira
Existem duas coisas que me causam, mais que incômodo, irritação. A primeira é usar argumentos puramente acadêmicos para explicar fenômenos reais; a segunda é a fixação do brasileiro em rankings e comparações. Por mais que a aversão aos argumentos puramente acadêmicos possa parecer estranha, vinda de alguém que se dedicou ao desenvolvimento acadêmico, o argumento passa a fazer sentido quando se lembra que, em Economia, nada é estanque e que cada teoria explica um pedacinho do que aconteceu ou pode acontecer. Já os rankings e comparações entre países perdem seu lugar quando se levam em conta a área, a população e o clima, entre inúmeros outros fatores, o que impede colocarem-se países cabeça a cabeça em um páreo.
O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em entrevista ao Valor Econômico em 20 de janeiro último, defendeu aberta e claramente a desindustrialização do Brasil, mantendo somente a indústria ligada ao beneficiamento de produtos primários. Ele afrontou os dois pontos que me são dolorosos citados no parágrafo acima. Primeiro, ele falou em vantagens comparativas, o que é uma discussão centenária em nosso país, a começar por José Maria Lisboa, Visconde de Cairu, em 1810, passando pelos embates entre metalistas e papelistas na segunda metade do século XIX, continuando pelo século XX adentro, desembocando nas discussões entre ultraliberais e progressistas que estamos presenciando.
A indústria de automóveis, graças à complexidade de seus produtos, é o motor de uma cadeia de produção que dá escala ao fornecimento de itens aparentemente dissociados dela
Cairu precedeu em 11 anos a teoria das vantagens comparativas de David Ricardo, teoria esta que recebeu um banho de modernidade pelas mãos de Michael Porter nos anos 1980. Sim, mero banho de modernidade, porque Ricardo já punha em sua teoria o fato de o Império Britânico contar com tecnologia, infraestrutura e logística capazes de tornar seus produtos vantajosos perante outros de menor valor agregado. Ele citou claramente os tecidos ingleses como produtos a serem trocados pelo vinho português e garantiu — aritmeticamente, mas não na prática — que ambos, Portugal e Inglaterra, sairiam ganhando.
Porter não fez outra coisa além de categorizar a necessidade de construir estratégias capazes de garantir as vantagens, quando não compensar sua falta, ainda assim defendendo a especialização. O fato é que, qualquer que seja o país, a tecnificação agrícola liberou mão de obra que migrou para as cidades, que passaram a depender fortemente da sua capacidade de consumo para se manterem longe do caos social. Por mais que a prestação de serviços dê emprego, a indústria continua sendo a base concreta do consumo.
Senti-me ainda mais agredido intelectualmente pela comparação com Chile, Canadá e Austrália. Não foi somente pelo fato de nossa população ser 10 vezes maior do que a de cada um, separadamente, e mais de três vezes a dos três somadas. Foi principalmente pelo ecúmeno. Para quem não se lembra, ecúmeno é a porção habitável de um país e o Brasil tem o maior do mundo, seguido de perto pelos Estados Unidos e de mais longe pela Rússia, embora ela tenha o dobro de nosso território.
Desafios logísticos
O Chile é uma tripa com um deserto ao norte e um cone inabitável ao sul. O Canadá é praticamente congelado, assim como a Sibéria. Austrália, por sua vez, é desértica na quase totalidade de seu território. Por causa disso, os desafios logísticos do Brasil são enormes e altamente dependentes de uma indústria local que desenvolva e fabrique bens adaptados às nossas condições. É ela que garante a competitividade em todo e qualquer setor de nossa economia, como abordei na matéria sobre o papel da indústria automobilística nos agronegócios.
O mesmo se pode aplicar à mineração, também citada pelo entrevistado como campo em que o país possui vantagens indiscutíveis, até mesmo imbatíveis. A logística de minérios é até mais crítica do que a do agronegócio, seja pelo peso específico do produto, seja pelo tamanho dos grãos, que chegam a ser milimétricos. Não dá para imaginar o setor sem uma indústria que garanta extração e logística, tendo sempre em mente que, quando não é a automobilística diretamente, existe graças a ela pela escala de produção.
Quanto mais se empurram os trabalhadores para a informalidade travestida de prestação de serviços, precarizando as relações de trabalho, menor é o poder de barganha dos industriais
Tenhamos sempre em mente que a indústria de automóveis, graças à complexidade de seus produtos, é o motor de uma cadeia de produção que dá escala ao fornecimento de itens aparentemente dissociados dela. Uma indústria pujante operando sem sustos é a base de uma economia com o tamanho da brasileira. Nesse quesito, a fabricação local de automóveis, sejam de passeio, sejam de carga ou transporte coletivo, é causa e não consequência, muito menos um departamento estanque de nossa vida material.
Por maior que seja a perplexidade, ou mesmo indignação, com as palavras do presidente do órgão cuja função é suprir o meio político com dados e aporte teórico, a entrevista tem um lado altamente positivo que abrange dois aspectos: a péssima distribuição da carga tributária brasileira e a consciência de que a destruição das instituições de classe pode ser funesta para o desenvolvimento como um todo.
É a primeira vez que se assiste uma confrontação aberta entre os empresários do agronegócio e os da indústria, os primeiros lutando pela manutenção das isenções, os segundos pela distribuição mais justa da carga que está asfixiando nossa capacidade produtiva. Ao mesmo tempo, os empresários dão indícios de que, graças à implosão dos sindicatos e a terceirização galopante, eles perderam seus maiores e melhores aliados em potencial — os trabalhadores da indústria, que se uniriam aos patrões para manter seus empregos.
Ao mesmo tempo, precarizando as relações de trabalho, enfraqueceram-se também as entidades patronais de classe. Ao retirar verbas importantes, por exemplo, do sistema S e contribuições diretas às federações das indústrias, também elas se fragilizaram politicamente perante os ruralistas. Quanto mais se empurram os trabalhadores para a informalidade travestida de prestação de serviços, menor é o poder de barganha dos industriais, brasileiros ou não. Sim, é perfeitamente possível suspender temporariamente o conflito de interesses se houver um antagonista em comum, que hoje são justamente os setores que o presidente do IPEA põe como de vantagem comparativa.
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