A expressão mal explicada tenta valorizar uma categoria,
mas há casos de mau uso que são mesmo difíceis de entender
Cerca de um mês atrás vi na TV, no anúncio do programa dominical Autoesporte, que seria explicada a suposta diferença entre um carro “seminovo” e um usado. Fiquei curioso e, no programa, ouvi que o critério de diferenciação é a idade — o seminovo teria até três anos, e o usado, a partir de quatro —, mas em seguida foi dito que estado de conservação, quilometragem e origem (o que quer que isso signifique) também influem na classificação.
Faz sentido? A meu ver, nenhum. “Seminovo” é para mim apenas um jargão inventado pelo mercado de carros usados para, de um lado, valorizar os modelos com poucos anos de uso (que voltam às lojas em grande número e representam grande capital empatado), e de outro, incentivar que quem comprou um carro novo venha a trocá-lo logo, antes de três anos, com receio de que seu “seminovo” seja rebaixado de categoria e, nessa ótica, severamente depreciado.
Tudo não passa de conversa de vendedor, como se percebe pela contradição entre as explicações do próprio programa: ora basta o carro ter menos de três anos, ora é preciso considerar uma série de parâmetros. Na falta de critérios claros, a classificação fica em um terreno nebuloso, que favorece os desonestos. Assim, aquele modelo 2011 que entrou “surrado” na loja recebe um tratamento visual e volta a ser oferecido com o rótulo de seminovo. Já seu carro bem tratado e pouco rodado, mas fabricado em 2009, não passa de um “usado” ao ser entregue na troca — o Autoesporte disse que quatro anos já impedem que ele seja um seminovo, não disse?
O que seria um “bloco de 16 válvulas”? Talvez o clássico motor V8 de cabeçote chato e válvulas laterais que a Ford norte-americana usou de 1932 a 1953
Toda essa questão me trouxe um bom tema para o Editorial: as palavrinhas proibidas, aquelas que não usamos no Best Cars ou que não têm aqui o mesmo sentido de outros lugares, mesmo que sejam comuns no mercado e na imprensa. Você já sabe por que não escrevemos “seminovo”, mas quais são as outras? Vamos a elas, em ordem alfabética.
• Bloco. Não se trata de evitar o uso da palavra, mas de empregá-la em seu devido sentido. O bloco do motor é apenas um de seus componentes, que recebe por cima o cabeçote para formar as câmaras de combustão. Contudo, vê-se com frequência por aí o uso de “bloco” como sinônimo de motor — “bloco de 1,6 litro”, “bloco de 100 cv” e outras. Ora, o bloco em si não produz potência. Pior ainda é “bloco de 16 válvulas” quando as válvulas na verdade estão no cabeçote. Ou estaria o autor se referindo ao clássico motor V8 de cabeçote chato (flathead) e válvulas laterais que a Ford norte-americana usou de 1932 a 1953?
• Cilindradas. Também arraigado de forma surpreendente no setor de motocicletas, até mesmo na publicidade das fábricas, é o uso indevido de “cilindradas”. Assim como comprimento, distância e peso, a cilindrada é uma medida e não uma unidade de medida — que são metros, quilômetros, quilogramas. Portanto, cada motor tem apenas uma cilindrada, que pode ser expressa em centímetros cúbicos (cm³), litros (equivalentes a 1.000 cm³) ou, no sistema inglês, polegadas cúbicas (pol³).
Simples? Sim, mas impressiona o quão frequente é ler por aí “motor de 1.000 cilindradas” — e temos sorte se essa medida não for descrita como potência! Não para por aí: há quem use “1.0 cc”, como se tal abreviação para centímetro cúbico (hoje em desuso) fosse o mesmo que litro. De resto, em português a parte fracionária deve ser separada por vírgula (1,6 litro) e não por ponto (1.6), que é o padrão inglês.
• Cupê. O termo é correto; o que não é certo é usá-lo para modelos de quatro ou cinco portas, como Audi A7, Mercedes-Benz CLS e Volkswagen CC, por mais que suas silhuetas sejam inspiradas nas dos verdadeiros cupês (que são, por definição, carros de duas portas).
• Geração. Um carro muda de geração quando há um completo redesenho, de modo que nenhum painel de carroceria seja mantido e, como ideal, que haja importantes alterações estruturais. Uma nova frente não serve: isso é no máximo uma reestilização, como se viu no VW Gol para 2000, quando a fábrica o denominou “Geração III”, e para 2006, quando surgiu o “G4”. No caso em questão, o mais recente modelo — que alguns já chamam de G6, imagine — é apenas a terceira geração, sendo a segunda lançada na linha 1995 e a terceira para 2009.
• Hidráulica. Outro caso de mau uso de um termo correto. Hidráulica não é a direção, mas sua assistência — tanto que, na hipótese de uma falha hidráulica, se mantém o controle do movimento das rodas, mas se precisa fazer bem mais força para movê-las. Para encurtar a expressão, “direção assistida” informa bem e sem imprecisões, assim como o power steering do inglês. Até porque a assistência também pode ser elétrica ou eletro-hidráulica, mas nem sempre se sabe, ou é o caso de mencionar, qual o tipo usado no modelo.
• Mecânico. Uma caixa de câmbio manual é mecânica, mas uma automática e uma automatizada também são. Então, por que identificar a primeira dessa maneira? O correto é mesmo falar em câmbio manual, que pode ser automatizado, caso haja um sistema para operar a mudança de marchas no lugar do comando do motorista. Já o automático pode ter modo de operação manual, mas não deixa de ser automático. O pior é chamar esse tipo de “hidramático” — nome que vem da marca Hydramatic, usada pela General Motors dos Estados Unidos em suas caixas automáticas.
“Compacto premium” foi usado para qualquer modelo pequeno que convivesse com sua geração anterior, mesmo com um acabamento bastante pobre
• Montadora. O termo é lido e ouvido por todos os lados, mas não aqui — e isso faz tempo. Qual a razão? É que as empresas que o termo identifica fazem muito mais do que montar carros: elas os fabricam, e por isso são chamadas de fabricantes. Estampam carrocerias inteiras, fundem blocos de motores, produzem transmissões: como isso pode ser confundido com o mero ato de juntar componentes?
O mau uso não tem similar mundo afora, pois no inglês se usa automaker ou manufacturer, em francês usine, em alemão werk, em italiano fabbrica. Portanto, nada de “montadora” lá fora, embora o que elas façam por lá seja o mesmo que fazem por aqui. Interessante é que as próprias fábricas são as primeiras a se intitularem com a palavrinha, apesar de estarem associadas à Anfavea — a Associação Nacional dos Fabricantes, e não das Montadoras, de Veículos Automotores. Ou seria o caso de renomeá-la Anmovea?
• Popular. Quando o então presidente Itamar Franco propôs a volta da produção do Fusca, em 1993, assinou um decreto que reduzia o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para veículos como o Uno Mille, o Chevette de 1,6 litro, a Kombi e, claro, o besouro da Volkswagen. Era o programa do carro popular, que não tinha relação com a cilindrada. No entanto, a expressão ficou na mente de muitos como se fosse sinônimo de carro com motor de 1,0 litro, e assim ainda é (mal) usada até hoje.
• Preços. Uma manjada manobra de marqueteiros e comerciantes é colocar um monte de “9” nos valores, pois o consumidor incauto tende a se fixar nos primeiros algarismos em vez de arredondar para cima. Assim, R$ 1,99 parece bem menos que R$ 2,00 para alguns, da mesma forma que R$ 59.990 sugerem uma boa diferença para R$ 60.000 — o número 59, ou até a noção de “cinquenta e poucos”, fica na cabeça de muita gente. Não aqui no Best Cars, onde essas diferenças são desprezadas e informamos, no exemplo citado, R$ 60 mil (a palavra mil deixa implícito que pode ter havido arredondamento, assim como R$ 60,2 mil podem não ser exatos R$ 60.200). Se os marqueteiros jogam dardos em um alvo com minha foto? Imagine…
• Premium. A palavrinha está nos olhos de muitas empresas, ansiosas por fixar seu produto como algo superior, especial, para que possam cobrar mais pelo mesmo. Um dos rótulos que mais foram vítimas de mau uso é “compacto premium”, que surgiu aqui há pouco mais de 10 anos, quando o mercado nacional recebeu modelos pequenos um pouco mais sofisticados — Citroën C3 e VW Polo são exemplos. De repente a expressão se viu consagrada para qualquer modelo compacto que fosse um pouco maior ou que meramente convivesse com sua geração anterior, como o Ford Fiesta lançado em 2002, que tinha um dos acabamentos mais pobres da história recente de nossa indústria.
• Semi-independente. O caso é semelhante ao do seminovo: a expressão tenta fazer parecer que algo é o que não é — seja novo, seja independente. O uso mais comum é para descrever a suspensão traseira por eixo de torção, que não é um sistema independente, mas não estabelece uma ligação tão direta entre as rodas quanto um eixo rígido. Aqui no site, deixamos de lado esse rótulo impreciso, assim como não cabe falar em mulher meio grávida…
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