Carinhosos ou depreciativos, os apelidos podem identificar
o carro, expressar sua aceitação ou decretar seu fracasso
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Quando chegou o momento de substituir o veterano 147, na década de 1980, a Fiat brasileira pensou grande: trouxe da Itália em 1984 — apenas um ano e meio após o lançamento europeu — o projeto do moderno Uno, que de repente mostrou como estavam envelhecidos os concorrentes Chevette e Gol. O bom humor do brasileiro, contudo, não demorou a apelidar o carrinho com uma alusão a seu formato: “botinha ortopédica”. Hoje se sabe que — para alívio da Fiat — a alcunha não impediu o sucesso do Uno, ainda um de nossos carros mais vendidos, quase 30 anos depois.
Aqui ou no exterior, tudo é motivo para apelidar um automóvel. Pode ser o desenho, uma característica técnica ou mesmo a falta de potência. Que o diga o Simca Chambord, lançado em 1959 com um motor V8 de apenas 84 cv e desempenho insuficiente: logo ficou conhecido como “Belo Antônio”, personagem de Marcello Mastroianni no filme homônimo ítalo-francês de 1960 que — como o sedã — era elegante, mas impotente. Mais tarde, nos anos 70, a própria denominação do carro esporte Volkswagen SP2, que significava sport prototype, virou “sem potência” na boca do povo.
O Fusca, no alto, foi apelido adotado como nome; o Uno virou “botinha ortopédica”
no começo; o baixo desempenho rendeu alcunhas ao Simca Chambord e ao VW SP2
Outro caso famoso é o do Volkswagen 1965 com um funcional teto solar de aço, alemão. Consta que um gerente de marketing da Ford foi quem espalhou o vexatório apelido de “cornowagen”, criando a imagem de que o equipamento serviria para maridos traídos. Ao ilustre marqueteiro pode ser atribuída a rejeição que os brasileiros tiveram por tanto tempo ao teto solar — até que, por ironia do destino, o Escort XR3 da própria Ford o tornasse um item desejado nos anos 80.
O Fusca com lanternas grandes não demorou a ser apelidado de Fafá, alusão aos seios de Fafá de Belém, assim como acontecera nos anos 50 com as “dagmars” dos Cadillacs
Nossos primeiros automóveis, é verdade, facilitavam a criação dos apelidos. Sem primar pela resistência, os pioneiros Renaults Dauphine e Gordini eram chamados de “leite Glória” em alusão ao mote desse leite em pó, “desmancha sem bater”. Pela precária estabilidade, a suspensão adotada por eles em 1960 — a Aerostable — virou “aerocapotable” na boca do povo. No concorrente DKW-Vemag Belcar, as portas dianteiras com abertura inversa (chamadas aqui e no exterior de “suicidas”) transformaram a pronúncia da marca de “decavê” (DKW) para “dechavê”, pois “deixavam ver” algo mais quando as moças de saia entravam e saíam do carro…
Há apelidos que descrevem a simplicidade de um automóvel, como Tin Lizzie para o Ford Modelo T — algo como criada de lata, já que Lizzie era a gíria para uma criada eficiente e confiável, atributos que o popular automóvel também tinha — ou “guarda-chuva sobre rodas” para o espartano Citroën 2CV. Não faltam aqueles relacionados à forma de carrocerias e detalhes, como o citado do Uno. Caso bem conhecido é o do VW 1600 sedã de quatro portas de 1968, que teve o azar de nascer sem nome, deixando a deixa para o público. As formas quadradas e as quatro maçanetas cromadas foram a inspiração e o sedã virou o “Zé do Caixão”, nome de guerra do ator e cineasta José Mojica Marins.
O DKW com portas invertidas era “dechavê”; o Citroën 2CV, “guarda-chuva sobre
rodas”; e o Ford Modelo T, uma criada de lata nos EUA ou “Ford de bigode” aqui
O próprio Fusca ganhou inúmeros apelidos mundo afora, a maioria por causa da semelhança de formas com um inseto: besouro no Brasil, carocha em Portugal, maggiolino na Itália, Käfer na Alemanha, beetle ou bug nos Estados Unidos, escarabajo na Espanha, coccinelle na França e na Bélgica… A fábrica chegou a brincar com o fato na publicidade da versão 1600 S nacional, de 1974, chamada de “bizorrão”. Ao lançar sua última interpretação, em 2011, a VW alemã permitiu que cada filial adotasse o nome ou apelido usual no país, o que fez renascer o Fusca entre nós.
Quando o Fusca ganhou lanternas traseiras grandes e circulares, em 1979, não demorou a ser apelidado de Fafá, alusão aos seios fartos da cantora Fafá de Belém (em Portugal, contudo, era o Fusca “pata de elefante”). Esse tipo de “homenagem” não era inédito: nos anos 50 as protuberâncias do para-choque dianteiro de Cadillacs como o Eldorado, nos Estados Unidos, eram chamadas de dagmars em referência ao busto de Dagmar, uma atriz e modelo norte-americana, enquanto nos anos 60 o Lancia Fulvia com grandes faróis auxiliares circulares se tornou Fanalone, que em italiano servia tanto para os elementos de iluminação quanto como gíria para seios fartos.
Três dos anos 50: o Cadillac Eldorado com “dagmars” no para-choque, o BMW 502
ou “anjo barroco” e o Edsel, um carro “chupando limão”, entre apelidos piores
Mesmo automóveis que estrearam com grande sucesso, como o Corsa em 1994, foram rebatizados pelo público. Todo arredondado, rompendo os padrões de estilo retilíneos de então, o pequeno Chevrolet foi chamado por alguns de Kinderovo, marca de um pequeno ovo de chocolate. Pela mesma razão o Gol de segunda geração, lançado poucos meses depois, tornou-se conhecido como “bola” ou “bolinha” para se diferenciar do antigo “quadrado” ou “caixa”. Na França dos anos 30, o alongado Talbot-Lago ganhou os apelidos de goutte d’eau (gota d’água) em francês e teardrop (lágrima) em inglês.
Tal como o Fusca, a Kombi foi apelidada em diversos países. Aqui virou “pão de forma” pelo formato, a exemplo dos EUA (breadloaf) e da Dinamarca (rugbrød), enquanto na Alemanha era Bulli — um diminutivo para bulldog, a raça de cachorros que, como o utilitário da VW, tem uma cara achatada. O BMW 501/502 dos anos 50 ficou conhecido como Barockengel ou anjo barroco, pois suas linhas sinuosas lembravam as esculturas de igrejas alemãs do período barroco. Na mesma década a Ford americana lançava o Edsel, cuja grade vertical foi motivo de piadas e apelidos — de um carro chupando limão até alguns chulos demais para publicarmos aqui…
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