Com o patrocínio concentrado nas categorias de elite, o Brasil perde a oportunidade de novos talentos ao volante
Durante muitos anos participei de um esporte a cavalo e cheguei bem alto nas competições. Minhas opiniões estavam sempre em choque com as dos que queriam elitizar o esporte e, infelizmente, foram elas que venceram: hoje a modalidade conta com uns gatos pingados somente, não dando empregos nem pondo a competir os melhores independentemente da capacidade financeira. Nas reuniões de que participava, defendia que as regras do campeonato deveriam privilegiar as provas locais e de baixo custo porque elas seriam a mina que, se bem garimpada, traria à mostra os grandes talentos.
Alguns opositores diziam que regras de campeonato não são marketing. Como não? Então não são elas que arrebanham público? Será que o que estamos vendo no automobilismo nacional não guarda extrema semelhança como que temos visto no futebol brasileiro? Quem vende bolas, uniformes e chuteiras, o futebol de várzea ou a seleção nacional? Por que um motorista comum não pode simplesmente brincar de automobilismo, senão em frente a um computador?
Pode haver pilotos talentosos escondidos em tratoristas, taxistas ou vendedores externos, que não podem mostrar suas habilidades porque o esporte elitizou-se
Em minhas andanças profissionais pelo interior, observei que o kart é cultuado em cidades de menos de 20 mil habitantes em estados como o Mato Grosso. Profissionais de renda média, como tratoristas, competem com macacões imitando os usados na Fórmula 1. Noutra feita voei para Araguaína, TO, com uma delegação de competidores infantis de kart e, pela minha conversa, um pai de participante perguntou: “Mas como é que você vai cobrir a prova sendo cego?”. Tive de explicar que eu nem mesmo compareceria à prova, que estava indo a trabalho para uma fazenda.
A experiência do Mato Grosso era mais parecida com o futebol de várzea, enquanto a do Tocantins mais lembrava uma escolinha de futebol, hoje tão comuns na capital. A primeira experiência era espontânea, a segunda controlada, até federada. Lembrei-me então de um campeonato que revelou jogadores fantásticos de futebol entre os extintos office-boys. Eram jogos de futebol de salão, na hora do almoço, em quadras improvisadas no centro de São Paulo. Chamava-se futeboys. Assim, pode haver pilotos talentosos escondidos por trás de tratoristas, taxistas — como Danny Sullivan — ou vendedores externos, que não podem mostrar suas habilidades porque o esporte elitizou-se.
Enquanto isso, os autódromos e kartódromos ficam às moscas acumulando déficits que, fatalmente, os levarão à bancarrota — daí derivar seu uso para espetáculos como Lollapalooza. Isso acontece por inúmeros motivos. Um deles, o desinteresse dos jovens pelos automóveis, tanto que nem carteira de habilitação tiram. Outro, que os carros se sofisticaram tanto que ficou quase impossível preparar um numa oficina de fundo de quintal, em que o proprietário, o piloto e o preparador são uma só pessoa. Ainda, porque a mídia concentrou-se no topo da pirâmide e acarretou para lá todo o patrocínio.
Direito de arena e recebíveis
A mídia fez algo muito pior: transformou as transmissões, mais notadamente o direito de arena, numa fonte do que o mercado financeiro chama de recebíveis. Hoje, esses valores são adiantados aos clubes de futebol, às equipes de Stock Car, até mesmo da Fórmula Truck, enquanto as modalidades mais acessíveis às pessoas comuns ficam à margem, sem meios para se manterem competitivas.
Já ouvi organizadores argumentarem que pilotos produzidos em laboratório, como Sebastian Vettel e Lewis Hamilton, não são fruto das categorias inferiores, muito menos do kartismo. Afirma-se que são resultado de muito treino específico em ambiente controlado para maximizar velocidade de reflexos, concentração e conformação física altamente especializados para brilhar na Fórmula 1, ao passo que a maioria dos competidores são os que trazem dinheiro para as equipes. Pode ser, só que eles não foram escolhidos na maternidade. Em algum lugar eles chamaram a atenção e então foram pinçados.
O alcance das transmissões determina a verba dos patrocinadores a campeonatos e equipes: aquilo que não aparece não atrai recursos
Como funciona essa estória de recebíveis? Assim como times de futebol, mas em muito menor escala, as equipes recebem pelo direito de arena ou direito de imagem, dependendo do contrato e das regras que regem o campeonato. Parte desse valor vai para a organização, parte é distribuída entre as equipes. Ocorre que tanto a primeira quanto a segunda não podem esperar as transmissões para receberem esses valores, que são mais ou menos fixos dependendo dos contratos de patrocínio.
Os documentos gerados ficam na categoria de recebíveis e acabam, via emissoras, indo parar em fundos de investimento, enquanto os valores, deduzidos os juros, são adiantados para cobrirem as despesas operacionais. Então, tudo passa a depender financeiramente de quem mostra, porque é o alcance das transmissões que determina a verba que os patrocinadores destinam aos campeonatos e às equipes. Não é de se surpreender que aquilo que não aparece não atrai recursos e todos eles concentrem-se nas competições de topo.
Pôr toda a culpa nas emissoras também é injusto: o circo da Fórmula 1, com seus prêmios de largada e verbas em função da classificação do ano anterior, faz isso mundialmente. Não é somente no Brasil que as categorias de base estão sofrendo, é no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, graças à alta renda e ao símbolo de liberdade que o carro ainda representa, há inúmeras categorias e muitas delas acessíveis. Mesmo assim, a queda de arrecadação com competições é um fenômeno mundial. No Brasil, categorias simpáticas que usavam carros como Chevrolet Corsa, Fiat Uno e Palio e Ford Fiesta simplesmente desapareceram e, com essa elitização, as oficinas ao redor dos autódromos, se não fecharam, já não têm o mesmo movimento.
Será que isso tem solução? Ao ver do colunista, não nos moldes tradicionais, porque tudo tem seu momento histórico e o automobilismo não foge à regra. É possível transformar o esporte em um negócio acessível de prestação de serviços, talvez com o aluguel de automóveis para que pessoas habilitadas em categorias possam participar de provas com investimento mínimo. Não seria um modelo parecido com as pistas de kart em recinto fechado, porque os autódromos serviriam também para competições oficiais e teriam de se manter homologados. Seria algo capaz de mantê-los ativos pelo ano todo, fossem privatizados ou públicos.
P.S.: Esta semana completo um ano como colunista do Best Cars. Estou muito feliz por poder compartilhar coisas que sei, outras que pesquiso e muitas que gostaria de saber, e aprender com os leitores do site. Muito obrigado pela paciência.
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