O pesado que dirige por si mesmo é alvo de estudos mais profundos nas universidades que o carro de passeio
Penso que nada causa mais curiosidade entre os amantes de automóveis do que o carro autônomo. Alguns discutem o assunto com vontade de que ele se popularize, outros por horror a verem-se fora do comando e da sensação de liberdade que o carro dá. Ninguém fica alheio à discussão que versa quase exclusivamente sobre o veículo de passeio como transporte motorizado individual, que pode ou não ser compartilhado.
Acontece que a economia capitalista funciona em busca de resultado, daí pensar-se no carro autônomo como transporte público individual e não como mero substituto do motorista. Lendo uma matéria em uma revista de logística do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), fiquei estarrecido ao ver que o que os norte-americanos chamam de self-driving truck (caminhão autônomo, em português) é alvo de estudos mais profundos, e com participação maior das principais universidades do mundo, do que o próprio carro de passeio, mesmo que este último esteja na mídia com muito mais destaque. É que, como já discuti em outra matéria, o veículo como meio de produção é investimento; como uso para lazer, é gasto.
Para um caminhão com vida útil de um milhão de quilômetros, dispensar o motorista faria economizar R$ 300 mil, quase o gasto com a reposição do veículo
Em países que têm no caminhão o esteio de sua logística, ansiar por veículos que dispensem o motorista há de ser um sonho dourado. É só imaginar um veículo que roda dia e noite sem parar, sem que haja ninguém que necessite ir ao banheiro, almoçar, jantar, dormir e, principalmente, sem restrições trabalhistas. Imaginemos que um profissional receba R$ 3.000 ao mês com 100% de encargos. Imaginemos agora que ele receba R$ 150 como diária de viagem e trabalhe 26 dias. Seu custo mensal será de R$ 9.900 por mês.
Suponhamos agora que a legislação trabalhista seja cumprida e o caminhoneiro dirija 10 horas por dia, numa otimista velocidade média de 80 km/h. Mesmo que o caminhão seja conduzido por mais de um profissional e não pare sequer aos domingos, para efeito de custos, o motorista terá conduzido por 20.800 km/mês. Isso significa aproximados R$ 0,45/km. Se a vida útil programada para o caminhão for de um milhão de quilômetros, em valor presente, a empresa economizaria aproximadamente R$ 300 mil, quase o gasto com a reposição do veículo.
O leitor pode argumentar que a maior parte de nossa frota é conduzida por caminhoneiros autônomos e que seu custo está embutido no valor do frete, que é negociado em valores fechados. É verdade e isso faz transparecer o uso de “rebites” (medicamentos para afastar o sono), excesso de carga e todas as distorções que provocam os acidentes que vemos anunciados diariamente. Como “não existe almoço grátis”, alguém tem que pagar por isso. Indo mais longe ainda, sem que o veículo possa ser guiado por seres humanos, o roubo de carga fica mais difícil.
Pistas segregadas
Só que o caminho para o paraíso é cheio de obstáculos. A priori, os algoritmos destinados a veículos de carga são muito mais complexos do que os voltados aos carros de passeio. O tamanho é mais significativo e, sobretudo, a carga altera sensivelmente o comportamento dinâmico, o que introduz pelo menos duas variáveis quase impeditivas. O interesse econômico, no entanto, supera quaisquer barreiras. Enquanto que, para os carros de passeio, a imprevisibilidade dos demais motoristas — em especial humanos — é fator preponderante, os veículos de carga podem trafegar em pistas segregadas por barreiras físicas ou mesmo construídas para esse fim. Além disso, sendo economicamente viável, os empresários de logística não postergarão a compra de novas máquinas como faria o motorista autônomo que, ao fim das contas, perde seu mercado.
As pesquisas são ainda mais ambiciosas, imaginando cavalos mecânicos poderosíssimos, verdadeiras usinas termoelétricas volantes, capazes de energizar motores em carretas dotadas de sistemas de direção que se acoplam em comboios rodoviários virtualmente ilimitados. É que hoje, dado que as carretas não possuem inteligência própria, pensar em rebocar mais que três delas com um cavalo mecânico tradicional chega a ser temerário. Isso resolve o maior problema dos trens, o transbordo, haja vista que os vagões não podem deixar os trilhos. Por sua vez, os comboios são dinâmicos, separando as carretas que assumem seu caminho, ao passo que outras podem incorporá-los durante o percurso.
As carretas incorporarão inteligência, tal que aumente a eficiência da condução humana, para maior número nos comboios fora das pistas segregadas
Isso já se faz com os vagões, visto que trens podem deixar alguns em certas estações, enquanto incorporam outros — só que a capilaridade fica longe de ser atingida porque sempre será preciso descarregar vagões e carregar caminhões, quando não usar os armazéns da empresa ferroviária. Com as carretas autodirigíveis, o processo de acoplamento e desacoplamento deixa de requerer estações, podendo até ocorrer em velocidade de cruzeiro.
De qualquer forma, a sofisticação, mesmo que economicamente viável, redunda em investimento inicial de maior monta. Assim, a adoção de solução tão mirabolante depende de haver empresas de logística dispostas a correr os riscos que hoje são compartilhados com os motoristas autônomos. Ao meu ver, mesmo que o futuro seja o descrito acima, a sociedade não aceita mudança assim tão radical. Para mim, teremos inúmeras etapas intermediárias, começando pela construção das pistas segregadas adjacentes às rodovias já existentes para reduzir o número de incertezas e minimizar o número de algoritmos envolvidos.
Paralelamente, as carretas incorporarão inteligência, tal que aumente a eficiência da condução humana, permitindo que seu número aumente nos comboios que trafegam fora das pistas segregadas. Essa automação — penso eu — vai ocorrer dos maiores veículos para os menores, até chegar aos VUCs (veículos urbanos de carga), visto que estes aproximam-se em esforço robótico aos carros de passageiros.
Resumindo, a condução autônoma é um caminho sem volta. Ao contrário do que se propala na mídia, em geral, e na especializada, em particular, porém, o esforço priorizará os setores em que o retorno econômico for mais sentido e, muito provavelmente, os carros de passeio não estão em primeiro lugar no rol de prioridades. Por causa disso, motoristas, acalmai, pois o caminhão autônomo vem antes.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars