Se a indústria não adotar o Desenho Universal, pode jogar fora os 24% do mercado de pessoas com deficiências
Certa vez tomei um táxi para ir à faculdade em que trabalhava. Pedi ao motorista de mais de 70 anos que entrasse pelo portão 2. Não só ele entrou pelo portão 1, como o fez pela saída. O porteiro gritava desesperado: “Por aí não, vovô!”, mas ele não ouviu e continuou rampa abaixo. Por sorte não havia ninguém saindo. Ficou claro que o motorista era surdo.
Doutra feita, peguei um táxi com um jovem dirigindo. Em dado momento, pedi-lhe que lesse o nome da rua e ele alegou que tinha esquecido os óculos. Pela experiência com as mais variadas deficiências, desconfiei de que fosse disléxico — incapaz de ler apesar de enxergar perfeitamente, como Tom Cruise. Isso me fez pensar: será que os carros são mesmo para todos?
Atender ao maior número de pessoas é um anseio supostamente generalizado. Por isso os carros têm trilhos sob os bancos e regulagens de encosto e dos retrovisores. Ajustes distância e altura do volante, intensidade da iluminação do painel e tantos outros ampliam a gama de adaptações a ainda mais gente. Há carros em que até os pedais são ajustáveis.
Segundo o Desenho Universal, os produtos e serviços têm de ser projetados para atender ao maior número possível de pessoas que a tecnologia permitir
Uma amiga revoltou-se quando o filho comprou um Volkswagen Golf com transmissão automática: “Para que isso? Com aquelas pernas boas…”. De fato, há 40 ou 50 anos, os carros automáticos eram importados como adaptações destinadas aos “paraplégicos”, que passaram a “deficientes“, depois a “portadores de necessidades especiais” (PNE) e, mais recentemente, a “pessoas com deficiência” (PCD). Já soube de subornarem-se funcionários dos Detrans para que se retirasse aquela anotação maldita da carteira de habilitação.
Mas à luz do Desenho Universal, conceito desenvolvido em 1985 pelo arquiteto norte-americano Ronald Mace (1941-1998), a caixa automática passou a considerar-se inclusiva porque aumenta o número de pessoas atendidas pela indústria sem a necessidade de uma adaptação posterior. A ideia foi tomando corpo até chegar à Organização das Nações Unidas (ONU), transformando-se em resolução da Organização Mundial de Saúde (OMS) de que o Brasil é signatário.
Segundo o conceito, que provocou uma revolução no marketing, os produtos e serviços têm de ser projetados para atender ao maior número possível de pessoas que a tecnologia permitir — e ela tem permitido atender a um volume crescente de indivíduos. O número de pessoas com deficiência está aumentando muito rápido por dois motivos.
Primeiro é que a Medicina faz com que sobrevivam indivíduos que até pouco tempo atrás não teriam a menor chance de estar entre nós; segundo, porque a humanidade está envelhecendo e a velhice é a maior fonte de deficiências. Pessoas perdem a audição, a visão, a força, a coordenação — mas continuam tendo todo o direito de usufruir do mundo e da tecnologia oferecida até o último de seus dias.
É claro que não se pode atender a todos em todas as suas deficiências, mas — até por uma questão de sobrevivência da indústria — é preciso perseguir constantemente essa meta. Por isso os telefones celulares vêm com leitores de tela nativos, Voice Over para o Iphone, Narrator para Windows Phone e Talk Back para Android. Esses produtos permitem que se ouça o que está sob o dedo e, assim que se encontra o ícone desejado, basta levantar o dedo e tocar duas vezes sobre qualquer ponto da tela para que se ative a opção.
Telas táteis, nem sempre boa solução
Estava eu no Ford Edge de um amigo quando ele resolver parar para fazer uma compra. Fiquei no carro ligado com ar-condicionado funcionando. Quando cruzei as pernas, esbarrei na tela tátil — meu amigo, de fora, notou os vidros embaçados e pensou que eu fosse congelar lá dentro. É que, sem notar, pus na temperatura mínima de 12°C e, por ser tátil, fiquei sem ter como regular o aparelho, posto que não enxergo.
Será que o problema atinge somente a mim? Todos são atingidos, como observou o editor Fabrício Samahá no comparativo entre Ford Ranger e Toyota Hilux: na buraqueira de nossas ruas ou mesmo em estradas de terra, toca-se em vários comandos indesejados nas telas táteis antes de chegar ao objetivo, sobretudo se houver sequência de menus. Alguns modelos, como Honda City e HR-V, descartaram os botões físicos de ajuste do ar-condicionado em favor de painéis táteis, outra ideia infeliz.
Imagine-se alguém com mal de Parkinson que treme; quem sabe, com hemiplegia; talvez, com paralisia cerebral; ou mesmo, simplesmente idosa: como faria para usar essas telas que se alastraram pela indústria automobilística? Se o leitor pesquisar na internet por automotive, touch, panel, accessibility, complaint, encontrará reclamações das mais variadas porque muita gente foi alijada pelo que se vende como avanço tecnológico.
Em seu telefone celular há ajustes para atender às mais várias deficiências: por que os carros não evoluem na mesma direção?
O World Wide Web Consortium (W3C), que nasceu da resolução sobre acessibilidade da ONU, reza que todos os sites tenham todos os objetos atingíveis por pelo menos três meios: tecla de atalho, mouse e teclado direcional. Como os softwares usam interpretadores HTML ou XML hoje, a tendência é que a acessibilidade passe a fazer parte da responsividade — ou seja, as regras do W3C estão-se adotando para tudo o que diz respeito à tecnologia da informação.
Não deveriam as telas táteis dos automóveis respeitar as mesmas regras? Algumas até respeitam ao adotarem botões como alternativa, mas não se trata de uma regra, o que dificultou a vida de muitos motoristas.
Em alguns aspectos, os projetistas dos carros têm atendido ao Desenho Universal sem saber. Pessoas com visão monocular sofrem, muitas vezes, da falta de senso de profundidade, o que lhes impede de guiar porque não conseguem calcular as distâncias com precisão. Sensores de proximidade e câmeras de manobras, assim como monitores de pontos cegos, abriram outro mundo para eles.
No entanto, outros equipamentos carecem de aprimoramento. Se qualquer leitor for às configurações de seu telefone, encontrará ajustes para as mais várias deficiências. Os surdos podem, por exemplo, ativar o alarme luminoso que acende o flash quando o telefone toca ou surge qualquer notificação. Enquanto isso, nos carros, ao acionar a luz de direção muitas vezes emite-se apenas o ruído característico de relê, sem regulagem de volume. Então se veem motoristas andando quarteirões com a seta ligada, o que talvez se deva a uma deficiência auditiva que não se respeitou ao projetar o carro.
Agora estão surgindo estudos sem volante ou pedais como avanço tecnológico, o que está longe de consistir novidade. Lembro-me de ter visto nos anos 60, na revista Mecânica Popular, um carro-conceito da Chrysler com joystick no lugar do volante e dos pedais. Em 1992 a Mercedes apresentou algo parecido como adaptação para tetraplégicos, o que não é Desenho Universal, ao contrário do anterior. Outro estudo da mesma marca alemã, o F-200 Imagination, era apresentado em 1996.
Por que ainda não vemos essa solução nos carros à venda? A questão é outra: em mercado, nada acontece antes do tempo e foi preciso quebrar uma tradição de mais de um século para haver aceitação, o que só se conseguiu pelo fato de os carros terem deixado de ser tão padronizados. Assim, mais gente com deficiência pode compartilhar automóveis sem adaptação com as “pessoas-padrão”.
Não se imagine que o Desenho Universal acabe com todas as limitações: a habilitação será sempre necessária e algumas deficiências continuarão a impedir a condução do automóvel, até que esta se torne 100% autônoma. O que deixo no ar é a pergunta: será que os fabricantes não pretendem maximizar seu mercado? Em caso da óbvia resposta afirmativa, será que tantos profissionais ali empregados nunca ouviram falar em Desenho Universal e que isso possa ser uma brilhante ferramenta de marketing para manter os carros em alta?
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