Em vez de substituir a importação de componentes, novo programa da indústria poderia incentivar projetos nacionais
O Inovar-Auto chega à reta final com resultados muito discutíveis. O programa estatal de incentivo à modernização da indústria de automóveis e sua cadeia de suprimentos, criado pela lei nº 12.715/2012, foi regulamentado por um quase incompreensível emaranhado de decretos e anexos, com a intenção de forçar a abertura de novos fabricantes que adquirissem componentes fabricados no Brasil.
Em que tudo isso resultou? Assistimos ao fechamento de vários centros de desenvolvimento, tanto de estilo quanto de tecnologia, em que fabricantes optaram por trazer projetos de fora. Abriram-se fábricas que só terminam carros, quase como no sistema CKD (completamente desmontado) de antes da Segunda Guerra Mundial, a fim de escapar ao aumento de 30 pontos percentuais de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) que o governo Dilma Rousseff adotara em 2011 como medida de proteção à indústria local. Nessas fábricas o índice de nacionalização chega a níveis anteriores a 1952, quando Getúlio Vargas começou a disciplinar a montagem de automóveis no País.
Como sempre, a contrapartida ao pretenso investimento por parte da indústria já instalada foi a nada criativa renúncia fiscal. Ela poderia gerar um crédito presumido de IPI de até 30 pontos percentuais, além da redução de alíquota de 1 pp ou 2 pp de acordo com o aumento de eficiência energética obtida. Em outras palavras, o programa não faz nada além de subsidiar uma indústria que, de outra forma, não se modernizaria — e deixaria de ser competitiva perante o resto do mundo. A História recente aumenta as dúvidas acerca de abrir mão de receber impostos trazer algum benefício à indústria e/ou a sociedade.
O mercado de automóveis, altamente cartelizado, tende a não repassar ao preço os benefícios fiscais: assim, a renúncia de tributos incorre em aumento do déficit público
Como o programa se extingue em dezembro de 2017, começou-se a discutir seu sucessor, o Rota 2030, como programa de longo prazo para desenvolvimento da cadeia produtiva de automóveis no Brasil. Será que agora não é a hora de sugerir pontos de mudança na forma com que se relacionam os impostos e a indústria? Não seria possível ser criativo em termos de política econômica?
O capítulo da economia que estuda os tributos é chamado de finanças públicas. Existem basicamente duas correntes. A defensora da mão invisível do economista britânico Adam Smith apregoa que os impostos sobre consumo devam recair sobre os bens de menor elasticidade (mais sobre ela a seguir), para que a arrecadação seja maximizada com a menor interferência possível no comportamento dos mercados. Enquanto isso, os que defendem a intervenção estatal, como os keynesianos (seguidores de outro inglês, John Maynard Keynes), pensam que os tributos devam recair justamente sobre os bens de maior elasticidade para maximizar a interferência, mesmo que a arrecadação não seja máxima.
Elasticidade é a variação percentual da quantidade consumida ou ofertada, consoante a variação do preço ou da renda. Um bem com alta elasticidade-preço da demanda é aquele cuja demanda ou oferta responda mais abruptamente a uma variação do preço. Uma elasticidade-preço da demanda igual a 1 significa que, se o preço dobrar, a quantidade consumida cai pela metade. O sal é o exemplo mais clássico de elasticidade-preço da demanda igual a zero, porque ninguém vai salgar mais ou menos a comida porque o condimento está mais barato ou mais caro.
Os automóveis têm alta elasticidade por vários motivos. O principal é a concorrência: mesmo que houvesse apenas uma marca no mercado, o carro novo competiria com o carro usado. Por causa disso, sob o ponto de vista keynesiano, seria o setor ideal para aplicar uma política fiscal intensiva. O problema é que esse mercado, altamente cartelizado, tende a não repassar ao preço os benefícios fiscais de que venha a gozar. Assim, a renúncia fiscal incorre em aumento do déficit público e, em consequência, da crise por que o Brasil está passando. A crítica que aqui se faz, por contundente que se apresente, não invalida a ideia de política fiscal — só condena a renúncia. Mas como resolver isso?
Nacionalizar a engenharia
Uma saída pode ser uma revisão de impostos: em vez de ser baseado em substituição de importações de componentes, que se baseie na substituição da importação de projetos. Essa ideia pode se alastrar por toda a cadeia de suprimentos, criando um ambiente de desenvolvimento tecnológico local.
Desde o início da implantação da indústria nacional de automóveis, os índices de nacionalização foram discutíveis, porque é usual dividir o pagamento das importações em duas rubricas distintas. Uma parte para a importação do componente subavaliado, outra para a remessa via pagamento de assessoria tecnológica ou pagamento de royalties.
Desde a abertura das importações, em 1990, a estratégia mudou para a supervalorização dos componentes para suprir a necessidade de engordar as contas de exportações das matrizes, o que só se agravou recentemente, com as sucessivas reduções das parcelas nacionalizadas para que se considerasse o carro como feito aqui. A métrica do índice de nacionalização baseado nos preços dos componentes, portanto, não é confiável.
Substituir a importação de projetos: a ideia pode se alastrar por toda a cadeia de suprimentos, criando um ambiente de desenvolvimento tecnológico local
Pensar em atribuir à engenharia local o índice de nacionalização requer, antes de tudo, uma métrica o mais confiável possível, haja vista que não há nada imune à burla. A sugestão é usar o peso das patentes internacionais geradas no Brasil como base de cálculo. Todos os projetos originados aqui seriam registrados internacionalmente, e o valor dos componentes a eles atribuído seria a base de cálculo para o índice. Uma biela patenteada no Brasil, mesmo que vinda da África do Sul, seria considerada nacional, enquanto outra biela patenteada na Alemanha, mesmo que produzida aqui, seria tida como importada.
Pode parecer bizarro, até mesmo promotor de desnacionalização da indústria. Ocorre que existe uma forte tendência de componentes serem produzidos no seu local de projeto, a não ser que outro tenha vantagens comparativas relevantes. Se tais vantagens existirem, que todos se beneficiem delas para que indústria torne-se detentora de vantagens competitivas, como descreve o professor da Harvard Business School Michael Porter.
Não há como negar que o espaço para isso num mundo tão globalizado seja muito limitado. Contudo, tentar basear vantagens comparativas em mão de obra barata também não se encaixa no século XXI. Além de os carros feitos aqui passarem a ter (mesmo que parcialmente) tecnologia nacional, a política traz benefícios secundários, como reduzir os valores remetidos na rubrica de assessoria técnica e royalties e ainda gerar receita a partir das patentes.
Segundo o Ministério da Ciência e Tecnologia, as pesquisas acadêmicas brasileiras geraram 680 patentes internacionais em 2009, mas somente 13 permaneceram nas mãos de empresas brasileiras ou com sede no Brasil. O investimento em pesquisa precisa ser nacionalizado, pelo menos para que uma parcela menor dos 12 mil engenheiros que o Brasil forma ao ano vá para o mercado financeiro.
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