
A Ford sai do Brasil e investe na Argentina não pelo mercado ou o risco-país, mas para continuar no Mercosul
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Desde que a Ford anunciou que deixaria de fabricar no Brasil, temos assistido uma verdadeira enxurrada de informações tentando explicar por que a empresa decidiu investir na Argentina, abandonando nosso território. Como sempre, puseram a culpa num tal de custo-Brasil, com a repetitiva ideia de culpar o assaltado por não ter trancado a porta, ou a moça estuprada por ter escolhido um maiô indecente.
Assim como ocorre no Brasil, os jornalistas de lá dividem-se em dois grupos: os que acham que a política do governo atual trará uma catástrofe e os que informam que as multinacionais acreditam na recuperação gradual da economia. Essa discussão, no entanto, restringe-se aos jornais com algumas notícias dignas de soltarem-se rojões, enquanto outras nos fariam arrancar os cabelos de desespero. Curiosamente, o meio acadêmico não se pronuncia nem de um lado, nem de outro.
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Nos anos 80 não havia divisas para a empresa liquidar ativos aqui e remeter à matriz, mas hoje ela pode continuar no mercado via importações
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Os últimos artigos científicos sobre investimento externo na Argentina datam de 2014, sob o ponto de vista econômico, e de 2015, quanto aos aspectos legais oriundos das reformas a serem introduzidas por Mauricio Macri. O fato é que nosso vizinho conseguiu uma excelente negociação com credores oficiais e a negociação com credores privados está em curso, minorando o montante a ser consumido em parcelas da dívida externa que, até a posse de Alberto Fernández, seriam absolutamente impagáveis.
O mais bizarro nisso tudo é que os que propalam haver multidões de empresas abandonando a Argentina, indo para o Uruguai e Brasil, afirmam que as candidatas a emigrar temem a escassez cambial. Se não há dólares, com que dinheiro viriam? De fato, as reservas deles não atingem os US$ 42 bilhões já quase totalmente comprometidos com pagamento de parcelas vincentes até junho próximo. Isso deixa algo como US$ 2,5 bilhões disponíveis para remessas ao exterior, seja como lucro, seja como remessas voluntárias.
Enquanto isso, a Ford anuncia que, para deixar de operar no Brasil como fabricante, reservou US$ 5 bilhões — o dobro da disponibilidade total do país vizinho — para cobrir custos de repatriação ou transferência de ativos. O montante mencionado serve, entre outras coisas, para indenizar empregados e ressarcir, como multa contratual, o Estado pela renúncia fiscal a que se sujeitou. O anúncio de semelhante verba em dólar não significa que a empresa vai abrir as burras e retirar toda a verba em notas de dólar, é apenas uma conversão. Não dá para sequer imaginar que operários brasileiros, em território brasileiro, sejam indenizados em moeda estrangeira.
Esta semana algumas centenas de empregados foram convocados a fazer peças de reposição em Camaçari, BA, denotando que a empresa — como fizeram todas as que conseguiram via salários subsidiados graças à pandemia — limpou os estoques, seja de carros novos, seja de peças de reposição. O caixa da empresa deve estar bem recheado. Quer-me parecer que a intenção seja sair daqui com um bom dinheiro no bolso e não será em reais, dependendo de nossas reservas cambiais para conversão.
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Decisão sábia
Isso me fez lembrar uma conversa de 1996 com um advogado, companheiro meu de Rotary Club, que participara da constituição da Autolatina, a associação entre Ford e Volkswagen que vigorou de 1987 a 1995. Ele me disse algo que não feria o sigilo profissional, mas era estarrecedor. Perguntei-lhe por que a Ford decidira associar-se em condições tão desfavoráveis a uma empresa que, pela experiência com a Vemag e a Chrysler, era conhecida por aproveitar associações para eliminar concorrentes.
Ele me disse que, nos anos 1980, simplesmente não havia divisas para a empresa liquidar seus ativos aqui e remeter o valor amealhado à matriz. As condições eram outras, pois as importações estavam virtualmente proibidas, formando-se um mercado institucionalmente cativo, que hoje não existe mais. Este foi substituído, graças à abertura, pela possibilidade de a empresa sair e continuar usufruindo do mercado via importações.
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Cabe ao Estado valorizar o mercado interno, como condicionar a entrada de novos participantes a um prazo de carência, caso eles se decidam por sair
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As variáveis falaram por si, minorando meu trabalho de pesquisa acerca dos entraves burocráticos argentinos à saída de empresas de seu território. Também não me qualifico como especialista em direito societário e sucessório do país vizinho. Tudo se resume no fato de que não há dólares suficientes nas reservas que permitam empresas abandonarem a Argentina neste momento. A Ford sabe que há reservas suficientes no Brasil para remeter os valores amealhados com a venda de ativos e a queima de estoques, deduzidas as despesas de encerramento. Na ânsia de reduzir suas operações como está fazendo no mundo inteiro, resguardando-se a participação de mercado via importações no Brasil, parece ter tomado a decisão mais sábia como empresa.
Ao que os números indicam, sair do Brasil e investir na Argentina não é uma escolha calcada em questões mercadológicas ou de risco-país, haja vista que o risco de lá é maior que o nosso. Trata-se de uma imposição com que a empresa terá de conviver se quiser continuar usufruindo do Mercosul.
Regular práticas de comércio exterior não necessariamente significa fechar o mercado, nem mesmo criar protecionismo que induza à perda de competitividade. Cabe ao Estado valorizar o mercado interno. Uma possibilidade seria condicionar a entrada de novos participantes a um prazo de carência, caso eles se decidam por sair. Nesse prazo, as empresas não poderiam exportar para o Brasil.
Isso faria com que os investidores pusessem essa perda de participação no cálculo de custo de abandono e só viriam se fosse para ficar. No presente caso, não podendo exportar da Argentina, mercado menor, para o Brasil, mercado maior, por — digamos — cinco anos, a Ford pensaria mil vezes antes de fechar as portas. Para deixar o mercado, seria preciso que ela mesma tratasse de encontrar um substituto, como o governo da Bahia está fazendo.
Resta-nos, como país, deixar de festejar qualquer pretenso investimento externo e dizer: “Se não for para ficar, por favor, não venha”. É sempre preferível importar a fazer concessões para internalizar uma produção que pode não ser lucrativa.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars










