Sugestões viáveis chegam às fábricas todos os dias e não são ouvidas, até que acabam por ser adotadas
Nos idos de 1991, tomei contato com os chips para identificação via radiofrequência (RFID). Como eu lidasse com agronegócios, os representantes da empresa, que mais tarde viraria a Novacard, fornecedora de RFID para os mais diversos usos, procuraram-me para desenvolver algo relativo ao controle do gado de elite junto às seguradoras, visto que o produto era caro demais para ser usado em animais comerciais.
Primeiro, apresentamos para todos os fabricantes de balanças como identificadores do que se estava pesando. Tive a ideia de moldar uma chave com um microchip dentro e saímos por aí demonstrando, tanto para fábricas de fechaduras como para fabricantes de automóveis. É bem verdade que nosso projeto não era funcional em si. Para demonstrar, usávamos uma simulação muito pouco eficaz, mas que dava uma ideia da aplicação. A indústria de fechaduras mostrou algum interesse, enquanto a de automóveis recebeu-nos com risotas. Hoje, não há chave sem um chip e muitos carros nem chave têm, só o chip.
O foco, que acomete o mundo empresarial como um todo, virou uma carapaça que impede que as ideias externas atinjam quem pode tomar decisões
No fim dos anos 1980, li uma matéria — não lembro onde — em que se relatava algo semelhante acerca das anteparas de borracha para evitar mossas na pintura por conta de vagas estreitas demais em prédios e estacionamentos comerciais. Se bem me lembro, a ideia foi apresentada inicialmente à Ford e causou sorrisos condescendentes. Nos anos seguintes, a começar pelo Del Rey, todos os carros receberam proteções desse tipo, muitas vezes à volta toda. Estou certo de que sugestões viáveis chegam às fábricas todos os dias e não são ouvidas, sequer consideradas como dignas de discussão. Mas por que a indústria de automóveis não nos ouve?
Ao que tudo indica, são duas as principais respostas para essa pergunta, uma psicológica e outra puramente econômica. A primeira é um encadeamento de fatores, enquanto a segunda já foi discutida indiretamente aqui.
Dizem que o uso do cachimbo deixa a boca torta. Por mais de 100 anos, a indústria tinha um séquito de admiradores que ansiavam por ter o mais novo modelo, que esperavam pelo mais recente desenvolvimento tecnológico. Se baterias havia contra as muralhas do cartel, poucas causavam danos. Talvez o primeiro petardo danoso tenha sido o livro Inseguro em Qualquer Velocidade (Unsafe at Any Speed), de Ralph Nader, disparado em 1965. Defensivamente, a indústria preferiu sacrificar um de seus peões — o Chevrolet Corvair —, que levou todas as culpas, enquanto os demais modelos seguiam incólumes.
Mesmo com todas as ameaças, a indústria parece não ter descido do pedestal. O séquito está diminuindo aos poucos, mas continua significativo, ainda capaz de criar fenômenos como os utilitário esporte.
O segundo fator extrapola a indústria e acomete o mundo empresarial como um todo: “o foco”. O foco virou uma carapaça que impede que as ideias externas atinjam quem pode tomar decisões. É evidente que manter o foco é vital para qualquer negócio, desde que não se torne um par de viseiras, ou, pior ainda, piloto automático. Aí, alguém observa esse vício e escreve que “é preciso pensar fora da caixa” — e a frase vira um bordão e perde totalmente o sentido porque repeti-la, por si só, é “pensar dentro da caixa”.
Então, as ideias externas tornam-se “assédio”. Montam-se linhas de defesa que começam pelas recepcionistas, passam pelos estagiários, atingem as secretárias, sempre preservando o foco e combatendo o assédio. O cúmulo é omitirem-se números de telefone no site, reduzindo o contato externo a um formulário ou e-mail de “fale conosco”, um endereço genérico de destino mais que impessoal, nebuloso.
Lote econômico
O segundo motivo tem a ver com a cadeia de suprimentos aliada ao que se costuma chamar de “lote econômico”. Uma invenção, por genial que seja, precisa de uma quantidade mínima de produção para tornar-se economicamente viável. Como essa quantidade pode estar além da capacidade de absorção da indústria, é preciso que a ideia caia nas graças os fornecedores para que façam o investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D), na expectativa de vender para a indústria como um todo.
Circuitos dedicados são bom exemplo disso. Imaginemos um computador emburrecido que só faz uma tarefa, como o do sistema de freios antitravamento (ABS), por exemplo. Ele tem uma arquitetura minimalista, tanto em instruções internas como na forma com que os dados são transferidos internamente, numa arquitetura denominada RISC (sigla em inglês para computador com conjunto reduzido de instruções). O resultado é um chip muito mais barato e rápido para resolver aquele problema específico. O limite é que, depois de instalado, não pode receber uma versão atualizada — só trocando o processador.
Uma só empresa não suporta todo o investimento em P&D: é preciso que a cadeia de suprimentos aposte na solução, que será vendida a todas as marcas
É por isso que, embora possamos jogar usando o computador, geralmente com arquitetura CISC (computador com conjunto complexo de instruções), usar uma estação dedicada dá muito mais agilidade. No carro, é a mesma coisa. O ABS pode ser resolvido num mesmo processador que, simultaneamente, opera a injeção eletrônica, só que isso exigiria um processador muito sofisticado e caro, além de mais memória para guardar as informações necessárias às duas tarefas a um só tempo.
Curiosamente, o lançamento do Pentium MMX pela Intel — então muito poderoso, apesar de sua arquitetura CISC — permitiu seu uso em aplicações dedicadas, entre meados dos anos 1990 e 2000, na indústria de automóveis. Ocorre que as funções nos veículos foram ficando cada vez mais complexas e os componentes voltaram à arquitetura RISC com circuitos totalmente dedicados. Já não era apenas o ABS: havia ABS, distribuição eletrônica de frenagem (EBD), controle de estabilidade e tração e assistente de saída em rampa, todos atuando simultaneamente sobre os freios.
Toda essa exigência computacional requer um investimento em P&D que uma só empresa não pode suportar: é preciso que a cadeia de suprimentos aposte na solução, que será vendida a todas as marcas, popularizando a sopa de letrinhas que abarca todos os modelos de uma mesma época.
A aparente surdez da indústria de automóveis é, portanto, uma soma de comportamento de castelão, que deixa a plebe para lá das muralhas, a uma dependência dos armeiros do rei, que produzem as armas com que todos vão competir no mercado. Em termos menos figuradamente feudais, as inovações individuais tornam-se cada dia mais difíceis e, mesmo que uma ideia de fora da comunidade seja brilhante, precisará ser introjetada no desenvolvimento em curso para ser adotada.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars