Definido sem participação popular, o programa de incentivo à indústria nasce com poucos objetivos e muitas falhas
A portas fechadas, somente com a participação de ministérios e a própria indústria, com vazamentos seletivos à imprensa, sem a participação popular, seja via consulta pública, seja pela convocação de órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil ou a Ordem dos Economistas, como um presente muito bem embrulhado para o Congresso, eis que irrompe, no apagar das luzes do governo Temer, a Medida Provisória 843/2018.
Ela institui o programa Rota 2030, o tão aguardado sucessor do Inovar-Auto como balizador de como a indústria automobilística deve seguir nos próximos anos. Os problemas começam já na ementa, que “estabelece requisitos obrigatórios para a comercialização de veículos no Brasil, institui o Programa Rota 2030 – Mobilidade e Logística e dispõe sobre o regime tributário de autopeças não produzidas”.
Interessante tributar peças não produzidas. Isso é o que se pode chamar de carga tributária excessiva, pois como tributar o que não existe ou o que não foi produzido? No texto encontram-se outras pérolas, como obrigar as empresas candidatas ao programa a adotar o regime do lucro real. Para quê? Nenhuma delas publica balanço! Quem vai fiscalizar? Certamente não o melhor fiscal, que é o mercado, haja vista que não se abrem as caixas pretas, até mesmo lacrando-as ainda mais.
Como está no texto do Rota 2030, ninguém é obrigado a contar com laboratório ou pessoal dedicado a pesquisa e desenvolvimento: somente o centro de custos basta

Logo no artigo 1°. encontra-se a primeira fraqueza, porque a MP delimita seu alvo de atuação aos itens inclusos na tabela do IPI adotada pelo Decreto n°. 8.950/2016. É uma bizarrice. Como confirmaram os advogados que consultei, basear uma lei em um decreto não é boa prática legislativa, haja vista que decretos são emitidos pelo Executivo para regulamentar leis. Assim, se a legislação pertinente ao IPI ou mesmo o decreto for revogado, sob pressão de outras forças políticas, a lei fica sem apoio, tornando-se inócua. Em juridiquês, é “uma inversão na pirâmide jurídica”.
Outro ponto de interesse é que a rotulagem energética, embora também se meça em MJ/km (megajoules por quilômetro) como faz o Renovabio, não necessariamente coincide com as metas estabelecidas no outro programa — que, aliás, não são estabelecidas pelo mesmo ministério. Podemos esperar conflitos de interesse entre ministérios que redundarão em uma tremenda confusão. Como se isso não bastasse, o artigo 6°. é um verdadeiro “bate e assopra”. Ao mesmo tempo em que é duro ao multiplicar o valor das multas pelo número de unidades vendidas de modelo transgressor, ele limita o somatório das multas a 20% do faturamento total, ou seja, a lei é muito severa com veículos de menor margem e muito branda com modelos de grande vendagem.
Mais que interesse, causa espanto o uso da expressão “centro de custo de pesquisa e desenvolvimento” no segundo tópico do item 4 do artigo 7°. É que a expressão é inerente a um método de contabilidade de custos. Como está no texto da MP, ninguém é obrigado a contar com laboratório ou pessoal dedicado a pesquisa e desenvolvimento — somente o centro de custos basta, tornando-se um bom exemplo do “para inglês ver” dos tempos do Império.
Para inglês ver
Um centro de custos nada mais é do que uma rubrica contábil em que se lançam dados de custos que podem, ou não, ser oriundos de serviços prestados externamente, como em empresas de desenvolvimento, à própria matriz no exterior e até pagamento de royalties. Digamos que a empresa escolha um novo formato para os faróis do carro. O fornecedor pode, à guisa de desenvolvimento, cobrar a elaboração de desenhos e ferramentas em separado, o que seria lançado nesse centro de custos sem que haja inovação alguma.
Ao mesmo tempo, empresas que não fazem mais do que apertar parafusos no Brasil só precisarão incluir essa rubrica em seu plano de contas, enquanto continuam a fazer o que sempre fizeram — ou a não fazer o que nunca fizeram, que é desenvolver produtos internamente. Ademais, a MP fala em convênios com entidades de ensino e pesquisa, mas não mostra quando, quanto ou em quê.
Na verdade, ao citar entidades públicas de direito privado, está incluindo o sistema S, ou seja, o dispêndio com treinamento em escolas como o Senai já contará pontos como desenvolvimento de produtos. Finalmente, o texto não explicita o que se vai considerar como nacional ou estrangeiro, assegurando que o que é importado gozará das mesmas benesses do que se produz aqui.
Há avanços, como a respeito de meios alternativos de propulsão e condução autônoma, mas fica quase tudo para regulamentação posterior pelo Executivo
Há, sim, avanços no Rota 2030, como a consideração dos meios alternativos de propulsão, bem como as necessidades de alteração para atender à condução autônoma. Mas fica quase tudo para regulamentação posterior, arrogando para o Executivo a autoridade para definir esses importantes aspectos via decretos. Se a intenção era fazer face ao mais desprovido de sentido dos bordões — “segurança jurídica” —, logo o primeiro entre os argumentos mostrados acima já desvia o Rota 2030 da rota desejada.
Cabe lembrar que a MP vale por 120 dias e, se não for votada até lá — mesmo em um ano com eleição a menos de 90 dias de sua publicação —, perde a validade. Será que os congressistas, com todas as suas obrigações eleitorais, terão tempo ou vontade de discutir o assunto?
Não resta dúvida de que o País precisa deixar claro aos empresários nacionais e estrangeiros o que se espera deles num setor de tamanha importância. Mas, por isso mesmo, não se podem pular etapas. Caso contrário, estaremos montando outro filho do Frankenstein como foi o Inovar-Auto. Da forma com que se estruturou a MP, não me espantaria que em um ano, caso ela seja ratificada no Legislativo, tenhamos um cipoal parecido entre decretos e portarias.
Quem me lê sabe que meu viés é para a tributação sobre a importação que considera não a origem dos componentes, mas a dos projetos. A MP, a meu ver, nos dá mais do mesmo com jargão modernizado. Se o Inovar-Auto nos deixou sem um ponto de partida, não parece que o Rota 2030 vá nos levar a algum lugar.
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