Vistorias estão em vias de extinção: compensa à seguradora o risco de pagar por um dano já existente
Todos temos ou já tivemos uma apólice de seguro para proteger nosso bem que, se não o mais precioso, é pelo menos o mais cobiçado, especialmente pelos amigos do alheio. E todos notamos que o prêmio (preço) do seguro se mantém constante, em termos percentuais, nos cinco primeiros anos da vida útil do automóvel, começando a subir em valor absoluto enquanto o bem segurado se desvaloriza, o que parece um contrassenso.
Um amigo comprou um Mercedes-Benz E 350 e surpreendeu-se porque o seguro era mais barato que o do Volkswagen Jetta de sua esposa que valia a metade. No extremo oposto, uma amiga que tem uma perua Citroën 2001 levou uma batida na traseira e, como o carro valia pouco, deu-se perda total. Nesse caso, o salvado (o que sobrou do carro depois do acidente) ficaria para a seguradora, podendo ser leiloado no estado em que se encontrava ou reparado antes de ir a leilão. Minha amiga negociou com a empresa descontar o valor do salvado da indenização e recebeu R$ 6.000, o que foi suficiente para consertar os danos e outras coisas mais.
As seguradoras hoje dispõem de sites e aplicativos de telefone para que o proponente faça a vistoria por si mesmo, inclua fotografias e responda a um questionário. Será mais uma revolução da tecnologia da informação?
Para a seguradora, um carro mais velho tem maior probabilidade de se acidentar ou ser furtado para desmanche, hipótese ligada à desvalorização em si

Esse comportamento virtualmente ilógico baseia-se na atuária, setor da Matemática ligada ao estudo das probabilidades. É o cálculo do risco-retorno. As seguradoras apostam em que o sinistro não aconteça, e são os seguros não usados que financiam as indenizações e compõem o lucro das seguradoras. Premio é o valor cobrado para elas assumirem o risco por nós. Quanto maior a taxa de risco, maior o prêmio percentual; quanto maior o valor segurado, maior o prêmio nominal. Os atuários chamam de risco assumido o múltiplo da taxa de risco pelo valor arriscado. O prêmio incorpora ainda os custos administrativos e o lucro da seguradora.
Depois de cinco anos de uso, os carros tendem estatisticamente à degradação, mesmo que o proprietário seja muito zeloso. Para a seguradora isso não importa: ela só pensa de acordo com a lei dos grandes números, e um carro velho tem maior probabilidade de se acidentar ou ser furtado para desmanche. Essa hipótese está ligada à desvalorização em si. O proprietário de um carro mais velho tem, provavelmente, poder aquisitivo menor e é suposto ser mais propenso a comprar peças usadas, que fomentam os furtos. Assim, a taxa de risco sobe mais rapidamente do que o valor segurado diminui e o prêmio começa a crescer até que segurar fique inviável.
Os carros mais velozes também têm maior probabilidade de envolverem-se em acidente, seja pelas maiores velocidades alcançadas, seja pelo comportamento do comprador — tornam-se “carros de boyzinho” aos olhos da seguradora, mesmo que dado proprietário seja a pessoa mais pacata e cuidadosa do mundo. O histórico de sinistros e multas do condutor é levado em consideração, mas com peso menor que o atribuído aos fatores físicos. Até onde fica o carro e para que é usado conta.
Vistoriar já foi diferente
De tudo isso o leitor sabe. A novidade está no fim das vistorias prévias. Elas custam caro e são poucas as seguradoras que ainda usam pessoal próprio. A maioria terceiriza esse serviço, entregando-o a grandes empresas, algumas delas multinacionais. O vistoriador recebe pelas vistorias feitas e pelas frustradas, porque ele cumpriu seu papel indo até o cliente na hora marcada sem o encontrar.
Vistoriar já foi diferente. As seguradoras costumavam ter postos de vistoria, em geral em pontos de grande circulação, o que gerava um custo fixo maior do que o de deslocar o vistoriador até o endereço do proponente. Antes as vistorias eram feitas para 100% dos automóveis; depois, eliminaram-se os carros zero-quilômetro; mais tarde, os veículos não transferidos que não tiveram sinistros. Agora, o que se questiona é o papel do vistoriador para quaisquer casos.
Os atuários estimaram qual era a economia real advinda do conhecimento prévio das condições dos veículos segurados, e chegaram à conclusão de que é menor que os recursos consumidos nas vistorias. Graças à internet, basta consultar o numeral do chassi no banco de dados do fabricante para saber quais são os equipamentos e dispositivos originais. Fica a cargo do proponente declarar os que tenham sido instalados posteriormente. Resolveu-se, então, correr o risco de ele estar mentindo e consertar o que já estava quebrado. Mas esse risco também é calculado porque o procedimento continua o mesmo, só que sob a responsabilidade do proponente.
A tecnologia não substituiu o corretor: numa perda total a seguradora tem que restituir o restante do período segurado, mas poucas pessoas sabem disso
A partir do momento em que se abandonam as vistorias, os resseguros têm seu prêmio recalculado também. O resseguro é o seguro das seguradoras: pode ser feito caso a caso, quando o risco é significativo em relação ao patrimônio líquido da seguradora. Há casos em que o risco é tão grande que precisa ser compartilhado entre seguradoras, como para as plataformas de petróleo, em especial quando envolvidas em acidentes ambientais como o vazamento da BP no Golfo do México.
O resseguro pode ser feito pela carteira, quando envolve todos os participantes de uma modalidade de seguro, como saúde e automóveis. Esta última modalidade costuma ser chamada de stop-loss (parar a perda): aciona-se quando o total de sinistros excede a somatória dos prêmios, o que deixa a seguradora a descoberto.
Ora, se a seguradora resolve correr um risco a mais, é natural que a resseguradora queira cobrar por essa decisão. Isso, para nós, é transparente porque não nos vamos beneficiar com essa redução de custo das seguradoras. É preocupante para empresas especializadas em vistorias, que vão perder parte importante de seu mercado. É mais um ponto em que a convergência tecnológica provoca uma revolução.
A tecnologia, porém, ainda não substituiu o corretor. Trata-se de uma atividade muito complexa e cheia de regulamentos, cabendo um profissional que nos auxilie. Numa perda total, por exemplo, a seguradora, além de indenizar o bem perdido, tem que restituir o restante do período segurado e poucas pessoas sabem disso. Eu só soube porque meu corretor me informou. Perdi um carro em junho de 1994 e tinha pago por um seguro com prazo de um ano a vencer em dezembro.
A partir do momento em que o objeto de seguro já não existe, o contrato fica extinto pela indenização e o período restante tem de ser restituído — recebi de volta a metade do prêmio pago. Entre o novo e o velho, nada melhor que o conhecimento.
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