Impulsionada pela greve dos caminhoneiros, medida pode destruir o programa de incentivo a combustíveis renováveis
No meu primeiro emprego, lá pelos idos de 1975, numa empresa ligada à Camargo Corrêa, meu chefe costumava dizer que “em fim de mandato até o cafezinho é frio”. É a mais pura verdade. Só quem já participou de uma reunião com integrantes comissionados de algum órgão público em fim de mandato, sobretudo sabendo-se que a possibilidade de reeleição é nula, presenciou a dificuldade que é conseguir que sirvam um mero cafezinho classificável como bebível.
Suponho que, no Legislativo, a máxima se reflita com até mais intensidade, especialmente para os deputados e senadores cuja possibilidade de reeleição seja desfavorável. É nessa ocasião, no “salve-se quem puder” que precede a entrega do cargo, que ocorrem as mais indigestas negociatas, afetando indelevelmente os setores menos representados, em favor dos muito representados e que tenham interesses mais urgentes.
Graças à política de preços da Petrobras, a gasolina subiu mais rapidamente do que os efeitos negativos do aumento do diesel para os canavieiros

A Medida Provisória 832/2018 é uma prova de que, em fim de mandato, quem berra mais leva. Estamos falando do tabelamento do frete. Embora saibamos que isso afeta a economia como um todo, aqui analisaremos somente o que concerne ao uso dos automóveis e ao mercado de combustíveis.
Temos um cenário desesperador para as usinas de açúcar. Mais uma vez, teremos um superávit significativo na produção mundial de açúcar. O Rabo Bank, banco holandês especializado em agronegócios, prevê que os estoques ultrapassem 100 milhões de toneladas e o preço, já muito baixo (US$ 273/ton), caia ainda mais. Isso se deve a que a Índia e a Tailândia aumentaram sua produção a ponto de desbancar o Brasil — cuja produção está em queda — como monopolista do produto. Dois fenômenos levaram a isso.
O primeiro foi a política equivocada de manter o preço artificialmente alto, desviando-se matéria-prima para a produção de álcool carburante nas duas variações, hidratado e anidro (este é adicionado à gasolina). O segundo fato foi a chegada do mal da folha aos seringais tailandeses, que inviabilizou a produção de borracha e empurrou os agricultores locais a migrarem para a produção de cana. Como já discutido em outra coluna, o programa Renovabio tem o fim de mitigar esses efeitos, induzindo à substituição de combustíveis fósseis por biológicos sem interferência direta do Estado, mas com mecanismos típicos do mercado financeiro como apoio.
As coisas até que vinham melhorando nos últimos meses. Graças à política de preços da Petrobras, puxando o preço do álcool, a gasolina subiu mais rapidamente do que os efeitos negativos do aumento do diesel para os canavieiros — os maiores consumidores setoriais desse combustível, à base de 13 milhões de metros cúbicos ao ano. É que os efeitos do aumento do diesel foram mais sentidos no cultivo, enquanto o CCT (Corte, Carga e Transporte) estava sujeito às variações ditadas pela oferta e procura dos serviços em si. Com o tabelamento do frete, estima-se que o CCT suba de 20% para 30% do custo da cana posta na planta, pondo em risco a margem de quem trabalha à jusante ou à montante da usina.
Custo de renovação
As más notícias no setor vieram logo após algumas alentadoras como o Renovabio, a introdução das variedades de cana plantadas a partir de sementes e as variedades transgênicas imunes à broca. A substituição do plantio em mudas por semeadura promete baixar o custo da renovação dos canaviais para um terço do valor atual. Isso permite diminuir o ciclo das variedades no campo, permitindo adotarem-se os melhoramentos genéticos mais amiúde com ganhos crescentes de produtividade. Ao mesmo tempo, a imunidade à broca promete diminuir o número de aplicações de inseticidas, com ganhos de produtividade e, principalmente, ambientais.
Essas duas inovações fazem sonhar com um rendimento de até 200 kg por hectare de açúcar ou 210 l/ha de álcool. Isso significa manter — quando não aumentar — a produção nacional sem o aumento na área plantada de cana. Mesmo assim, requer aumentar o ritmo do plantio, o que requer investimento significativo. Hoje já não se persegue a produtividade em toneladas de cana por hectare: o foco é conseguir o máximo de álcool ou açúcar por hectare de cana colhida, o que, sem o tabelamento do frete, reduziria o custo da matéria-prima posta na mesa de recebimento da usina. Tabelando-se o frete, jogando para cima o custo do CCT, os sonhos que não forem frustrados serão postergados.
Com a venda direta, nada impedirá que o álcool seja adicionado ainda mais à gasolina e passemos, sem saber e sem redução de custo, de 27,5% para 40% ou mais
Só que os problemas não param aí. Soma-se a eles a decisão do juiz federal Edvaldo Batista da Silva Júnior, que autorizou a venda direta de combustíveis das usinas para os postos. Isso retirou a intermediação obrigatória dos distribuidores, o que, aparentemente, reduziria o custo do álcool em benefício dos consumidores. Será assim? Com a venda direta, nada impedirá que o álcool seja adicionado ainda mais fortemente à gasolina e passemos, sem saber e sem qualquer redução de custo, dos atuais 27,5% para 40% ou mais.
Na verdade, para burlar a fiscalização por volume, isso já é feito: o fraudador completa com água o tanque de álcool, tal que se mantenham os volumes comprados das distribuidoras. A diferença é que vai ficar ainda mais difícil pegar a fraude. A medida judicial traz ainda mais dois problemas. Um deles é derrubar a cobrança por substituição tributária, ou seja, a contabilidade tem que partir dos postos e não mais das distribuidoras, e muitos estabelecimentos são desobrigados da escrituração diária por serem enquadrados como EPP (empresa de pequeno porte).
O segundo problema é que destrói o Renovabio, haja vista que a compra dos C-Bios ocorreria justamente nas distribuidoras, sendo o dinheiro revertido às usinas para investimento em melhorias tecnológicas desde o campo até a produção de álcool. Interessante é observar que a medida judicial veio na esteira da greve dos caminhoneiros — antes não se falava nisso.
Como sói acontecer no Brasil, fatos novos criam alvoroço e medidas absolutamente impensadas, algumas com origem no Executivo e festejadas pelo Legislativo, outras oriundas do Judiciário. Em comum, todas demonstram fraqueza do Estado perante o feudalismo que reina por aqui desde o descobrimento.
Coluna anteriorA coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars