Vai-vem da legislação sobre serviço de ônibus ajuda a explicar o tráfego de carros particulares sem condição
Em 1997, parado num semáforo, o carro de minha esposa foi abalroado na traseira por um VW Gol 1981. Quando nosso carro ficou pronto, no trajeto entre a oficina e o escritório um Voyage 1982 não conseguiu parar no sinal fechado e arrancou o pobre para-choque, que não durou meia hora. Isso me chamou a atenção para a quantidade absurda de “paus velhos” — como são conhecidos, entre outros apelidos, os carros velhos e sem conservação — rodando pelas cidades.
Suspeitei que isso tivesse relação com a má qualidade do transporte público no Brasil. Minha suspeita confirmou-se quando minha sobrinha veio do Rio de Janeiro para estudar na Universidade de São Paulo (USP) e disse: “Aqui, quem não tem carro não tem o direito de se divertir”. Ela tem razão: aos sábados a frota de ônibus cai 50% e algumas linhas são desativadas. Aos domingos ela cai para 25% com ainda menos linhas. É impossível um morador do Jardim Ângela ir visitar a mãe em São Miguel. Só tendo um “pau velho”.
Na remuneração por passageiro, os empresários medem a rentabilidade das linhas por ocupantes por km: não é interessante o usuário que vai de ponta a ponta
Na microeconomia — e, em consequência, no marketing — os bens podem ser substitutos, concorrentes e complementares. Substitutos, quando concorrem na função, mas não na forma (ônibus vs. carro); concorrentes, quando concorrem em função e forma (Voyage x Siena); superiores, quando o consumo aumenta com a renda (joia vs. bijuteria); inferiores, quando o consumo diminui quando a renda cresce (ônibus vs. táxi). Esse comportamento ocorre em um limite de preço; mesmo assim, as evidências mostram que não são conceitos estapafúrdios. Onde fica o transporte coletivo?
Em 1989, a então prefeita de São Paulo Luíza Erundina (1989-1992) alterou a forma de remuneração das companhias de ônibus: antes por passageiro, agora por quilômetro rodado. Surgiram lendas como “o empresário deixa o carro rodando sobre cavaletes”, o que jamais aconteceu porque a distância das linhas era conhecida — bastava contar as viagens. Andava-se sentado, até lendo jornal, como em Londres, mas surgiu a reclamação de que os ônibus andavam vazios demais. Segundo alunos meus, herdeiros de uma operadora de nível nacional, não foi verdade porque havia um limite de carros por trajeto.
Por passageiro, os empresários medem a rentabilidade das linhas pelo IPK (índice de passageiros por km). Se o custo por km for de R$ 5,00 e o repasse pela prefeitura for de R$ 2,50, serão necessários dois passageiros por km para compensar. Assim, não é interessante o usuário que vai de ponta a ponta da linha, mas a rotatividade. Isso induz as linhas a serem verdadeiros caminhos de rato, dando voltas e mais voltas para maximizar o IPK.
Quando a remuneração é por km, quanto mais carros houver na rua, maior a receita. Seria de imaginar que os empresários adorariam esse método porque, sendo o preço justo e sem superlotação, menor o custo por km, apesar do maior peso do trabalho (cobrador e motorista). Só que eles não gostaram nada da ideia porque cabia a eles comprar os novos ônibus.
Toda a sucata para São Paulo
Veio a gestão de Paulo Maluf (1993-1996) e, com a privatização da Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), voltou-se a pagar por passageiro, mas de forma desfavorável aos usuários: no mesmo decreto a idade do carro deixou de contar pelo chassi, mas pela carroceria. Todo o descarte de ônibus do Brasil veio parar em sua maior cidade, reencarroçado. Sem controle de frequência, a frota reduziu-se. Com superlotação e veículos ruins, floresceu o transporte clandestino — lembra-se dos perueiros? — a ponto de as concessionárias ressentirem-se da concorrência.
A mesma ideia de pagar por km, com o nome de pagamento por partida, voltou na gestão de Marta Suplicy (2001-2004). Dessa vez a estabilidade econômica permitiu a aquisição dos ônibus pelo BNDES com juros reais de até 5% ao ano, o que diluiu o desembolso inicial. Mesmo assim, os empresários não gostaram devido ao custo da mão de obra, que subia em função do número de carros na rua, e o modelo nunca foi totalmente implantado. Previa-se uma alteração significativa dos trajetos para acabar com os “caminhos de ratos” e induzir à baldeação, tantas vezes quanto necessário a otimizar seu percurso e sem esperar muito.
Se a função do cobrador fosse eliminada e os habilitados fossem promovidos a motoristas, seria possível usar ônibus menores, mais ágeis e com maior frequência
Assim que tomou posse, em 2005, José Serra voltou a pagar por passageiro. Os carros novos foram vendidos, as dívidas foram transferidas para os que ficaram (resultando numa régia entrada de caixa), a frota diminuiu, a lotação aumentou e, a exemplo das gestões Maluf e Pitta, cresceu o número de “paus velhos” nas ruas, reforçando o pensamento de minha sobrinha. O transporte clandestino só não ressurgiu por conta do bilhete único e do vale-transporte eletrônico, que não pode ser negociado no paralelo.
Para um membro da classe D, não importa quão velho e acabado seja seu carro: será sempre um bem substituto e superior ao ônibus. Substituto ele é por conta da disponibilidade; superior ele acaba sendo, injustamente, porque suas condições de trafegar são muito menos que sofríveis. Aí entra outro conceito microeconômico, o efeito demonstração.
É importante para o indivíduo mostrar que largou o ônibus por um carro. A ideia de “ver e ser visto” existe em todas as classes sociais. Devido aos maus serviços de transporte coletivo, ser visto num ônibus é depreciativo, a pessoa — em especial da classe D — sente-se socialmente diminuída. Uma prova disso é o metrô, que em São Paulo é de muito boa qualidade, mesmo lotado: nele, ricos e pobres compartilham o espaço sem pejo. Em Nova York é justamente o contrário: como o metrô é sujo e mal cuidado, bonito é andar de ônibus, por mais demorado que seja.
Existe ainda outro complicador, o cobrador. Segundo artigo do jornalista Adamo Bazani, especialista em transporte, os cobradores custam para os contribuintes de São Paulo o mesmo que o subsídio dado pela prefeitura às empresas privadas. No Brasil inteiro esse profissional está por acabar e, em muitas cidades, isso já aconteceu a 100% das linhas, mas na capital paulista uma lei municipal obriga a presença de um funcionário além do motorista. Isso induz ao uso de carros cada vez maiores, de tal modo que o custo da mão de obra sobre o km rodado diminua. Então, linhas com frequência de 5 minutos e carros de 12 metros passaram a ter uma frequência de 10 minutos com carros de 23 metros.
Para os arquitetos que se dedicam a projetar a distribuição interna dos veículos, a presença do cobrador e da roleta bem no meio causa grandes restrições. O conjunto ocupa quatro lugares, além de desorganizar o resto. O cobrador, depois da introdução dos bilhetes eletrônicos, fica ocioso a maior parte do tempo porque em São Paulo somente 8% dos pagamentos são em dinheiro. Se a função fosse eliminada e os muitos cobradores habilitados fossem promovidos a motoristas, seria possível usar carros menores, mais ágeis e com maior frequência, minimizando o desemprego e otimizando o sistema de acordo com o desenhado quando do projeto do bilhete único.
Como vimos, são vários os fatores que impedem a adoção de um modelo de transporte coletivo atraente para a população como um todo. Um deles é, como se viu no debate entre Serra e Haddad na corrida à prefeitura, em 2012, a polêmica se transporte coletivo era coisa para rico ou para pobre: o correto é afirmar que é para o povo.
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