A venda direta de combustível aos postos é essa maravilha toda? Surgem dúvidas de ordem logística e de financiamento
Honda, Stellantis e Volkswagen já anunciaram que não desenvolverão novos motores a combustão, indicando que seus veículos serão totalmente elétricos em prazos variados, que vão de 2030 a 2040. Até o motor supereficiente a álcool em desenvolvimento pela Fiat foi abandonado em prol de solução única, com os motores Multiair como definitivos. Ao mesmo tempo, os produtores de combustíveis, vendo que a eletrificação é caminho sem volta, buscam entrar no jogo das mais variadas formas.
Os usineiros não fogem à regra e abrem duas frentes de batalha: a independência na venda do álcool e o desenvolvimento das células a combustível. As duas frentes são complementares, mas a segunda é mais dependente da primeira que a primeira da segunda. Hoje, os usineiros são obrigados a vender álcool para as distribuidoras, não importando se anidro ou hidratado. Para as distribuidoras, é um excelente negócio. O hidratado, além da margem própria, minimiza o frete da gasolina, enquanto o anidro é pago a preço de álcool e vendido a preço de gasolina. Naturalmente, o valor pago pelo anidro é um pouco mais elevado do que do hidratado, mas muito inferior ao cobrado pelo hidrocarboneto.
Hoje, os usineiros são obrigados a vender álcool para as distribuidoras, não importando se anidro ou hidratado: para as distribuidoras, é um excelente negócio
À primeira vista, o PL 968/2018, que pretende liberar a venda direta do combustível aos postos, é um avanço. Ele resolve o maior empasse de até então — a cobrança dos impostos por substituição tributária, estudado em outra matéria, transferindo-a das distribuidoras para as usinas. Pretendem-se racionalizar o mercado, pois, eliminando-se um intermediário. São dois os possíveis cenários: manutenção ou queda do preço do álcool ao consumidor. Se o preço não cair, as usinas terão lucro maior e poderão investir mais na sua sobrevivência, via células a combustível. Se o preço cair, ganham os consumidores e a produção de álcool tende a subir, criando real concorrência entre os combustíveis de duas origens, mineral e vegetal.
Será que venda direta aos postos é essa maravilha toda? Surgem dúvidas de ordem logística e de financiamento.
Hoje, o frete fica todo por conta das distribuidoras, que vão buscar o álcool nas usinas, armazenando e redistribuindo o hidratado, ao passo em que o anidro é misturado à gasolina, aproveitando o mesmo veículo para entregá-la aos postos. Com a venda direta, essa capilaridade é destruída e, basicamente, três redes seriam criadas. A primeira destina-se a levar o álcool aos postos, e a segunda, a levar álcool anidro às distribuidoras. É que, devido à eliminação do chumbo tetraetila, a adição mínima será de 10% para manter o poder antidetonante da gasolina.
A terceira rede é a que leva a gasolina com álcool das distribuidoras aos postos. Retira-se a distribuidora e colocam-se transportadoras, verdadeiras agências de frete, no lugar. O acréscimo de custo da alteração do processo é uma verdadeira incógnita, pois trata-se de um mercado muito capilarizado. Não espantaria se, depois de tentativas malsucedidas, as distribuidoras voltassem à cena como prestadoras de serviço, cobrando pela armazenagem e distribuição.
Venda antecipada
Hoje, entre 60% e 80% da produção agrícola, incluindo o minimamente processado, dá-se via CPR (cédula de produto rural). O produtor, também conhecido como originador, emite um documento que cobre, em produto, seus custos de dentro da porteira. Supondo que, para produzir 1.000 toneladas de cana-de-açúcar, o produtor consuma 350 toneladas em recursos vários, emitirá uma CPR de 35% da produção esperada, tal que não precise lançar mão de capital, que ele pode não ter, ou não querer usar, para se manter no negócio.
O comprador, também conhecido como liquidante, compromete-se a ficar com a quantidade constante da cédula, a qualidade e preço fixos e combinados. Por fim, o agente financeiro coloca esse papel no mercado, via fundos, e levanta os recursos que serão entregues diretamente ao produtor, enquanto a liquidação, depois da entrega, é feita pelo comprador. Isso configura uma venda antecipada e o produtor torna-se fiel depositário do que ainda não produziu, comprometendo-se a buscar, seja aonde for, o material a entregar, em caso de frustração de safra.
Para postos individuais ou pequenas redes, fica difícil pôr o papel no mercado: as usinas têm histórico de calote, de sorte que os investidores não demonstram apetite por seus títulos de dívida
Esse risco não deve ser crítico, visto que a quantidade comprometida não costuma ser elevada, podendo atrelar a um seguro agrícola, mitigando os riscos para o comprador e para si mesmo. Dessa forma, o investidor corre os riscos do comprador, não do produtor, o que é uma forma de securitização. Existem outros derivativos desse documento, que não vêm ao caso. Hoje, o liquidante costuma ser a distribuidora, que tem um risco muito mais palatável do que as usinas e os canavieiros.
Eliminando-se a distribuidora como liquidante, quem vai assumir esse papel? Os postos? No caso de grandes redes, que têm distribuidoras e TRR (Transportador, Revendedor, Retalhista), até mesmo usinas, como é o caso da Raízen, sem problema, nada muda. Quando se tratar de postos individuais ou mesmo pequenas redes, com até dez postos, fica difícil pôr o papel no mercado. As usinas têm extenso histórico de calote, especialmente, aos produtores independentes de cana, de sorte que os investidores não demonstram muito apetite por seus títulos de dívida. Em maior ou menor grau, o risco de crise de financiamento no setor é considerável, pondo em risco a quantidade produzida.
Nem tudo o que é fruto de imposição é irracional. Às vezes, o arranjo produtivo vigente, mesmo que não nascido do mercado, pode ser o mais racional, justamente por não ter sido fruto de desequilíbrio de poder. Seja pelo lado logístico, seja pelo lado do financiamento, a eliminação das distribuidoras na cadeia de suprimentos, transformando-as em prestadoras de serviço, pode ensejar uma concentração jamais vista na venda de combustíveis, afetando a cadeia produtiva, desde antes da porteira até o varejo.
Entidades representativas e técnicas, como a Única (Associação Brasileira da Indústria da Cana-de-Açúcar), podem ajudar no desenvolvimento das células a combustível, pois o interesse é de todos. Por filosófico que possa parecer, o mercado não resolve tudo, podendo transformar a mão invisível em garra mortal.
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