Fábricas ou montadoras: afinal, o que faz a indústria de automóveis?

Com a terceirização em novos patamares, o conceito tradicional de fabricante está se afastando da realidade

É uma discussão frequente no meio automobilístico se é correto falar em montadora de automóveis ou se deveria ser fábrica de automóveis. Até os anos 1990 não se ouvia dizer “montadora” — era somente fábrica, às vezes, indústria automobilística. Aí apareceu também o termo “automotivo”, que é alvo para outra discussão, visto que automotivar e automotivação são termos usados em psicologia. O que cabe aqui é saber se a indústria sobre a qual escrevemos é de fábricas ou montadoras de automóveis.

Antes, precisamos discutir outro par de termos: horizontalização e terceirização. Originalmente, o contrário de horizontalizar era verticalizar. Empresa verticalizada era a que procurava maximizar o domínio sobre a produção de peças e partes, reduzindo ao mínimo o número de fornecedores sequenciais na cadeia de suprimentos. A indústria brasileira de automóveis nasceu horizontalizada, ou seja, vinham peças de fornecedores vários para serem juntadas em uma linha de montagem.

Não se pode afirmar que “terceirização” e “montadora” surgiram ao mesmo tempo, mas a correlação é incontestável: “montadora” indica a predominância da montagem de peças de terceiros

A Mercedes-Benz terceirizou a produção da picape Classe X à fábrica da Renault/Nissan da Argentina

Como largamente discutido, a indústria de peças chegou muito antes da de automóveis em si, seja porque o número de veículos tornara-se significativo, seja porque parte dos imigrantes já trabalhava com partes e peças nos países de origem. Com o passar do tempo e com a nacionalização progressiva, as empresas, que antes traziam carros no regime CKD (completamente desmontados na sigla em inglês) para serem montados aqui, foram-se verticalizando, abrindo fundições e linhas próprias de usinagem, chegando mesmo a fabricar itens impensáveis como blocos de motores, virabrequins, tambores de freio e algumas engrenagens especiais.

O processo de decisão sobre manter fornecedores ou eliminá-los, assumindo seu passo na cadeia produtiva, foi explicado em minha primeira matéria sobre a teoria dos contratos. Lá pelos anos 1980, o termo horizontalização caiu em desuso e a palavra terceirização assumiu seu posto perante os modismos atribuídos à Administração de Empresas. No fundo, é a mesma coisa, tanto que o antônimo continuou sendo verticalização.

Não se pode afirmar que os termos “terceirização” e “montadora” surgiram ao mesmo tempo, mas a correlação é incontestável. É que “montadora” indica a predominância da montagem de peças feitas por terceiros sobre a transformação local de matéria-prima em componentes.

Para que se tenha uma ideia, a pintura-base, também conhecida como primer, é feita pelo fabricante das chapas, restando à indústria de automóveis adicionar somente a cor. Aplicar a base sobre uma chapa plana permite uma uniformidade que não se consegue pintando a peça depois de dobrada, mesmo que usando pintura eletrostática, seja em pó, seja em leito “fluidizado” — outro termo execrável, aliás. Este último processo, em si, foi abandonado depois do incêndio na Volkswagen em 1972.

Produção terceirizada

Para que a terceirização chegasse a esse nível, muitas coisas tiveram de ser alteradas, seja na cadeia de suprimentos, seja na estamparia. Os fabricantes de tintas, por exemplo, precisavam garantir elasticidade suficiente à base, tal que ela não se rachasse no processo de dobradura e estampagem em geral. O fabricante de automóveis, por sua vez, teve de reprojetar seus moldes e gabaritos para não machucar a pintura aplicada às chapas enquanto planas.

O conceito chegou ao extremo na exata medida em que se terceirizou a produção completa. Assim como os telefones celulares raramente são produzidos pela empresa que detém a marca, a Mercedes-Benz decidiu terceirizar a produção de sua picape média Classe X à aliança Renault/Nissan da Argentina, atitude esta que se está tornando muito comum entre marcas ocidentais e indústrias chinesas. O Ford Territory é um bom exemplo, pois é produzido pela Jiangling Motors, na China, e vendido como Ford naquele mercado e nos de exportação, caso do brasileiro.

Motores de terceiros são cotidiano: a novidade é a entrada de empresas alienígenas oferecendo algo que os fabricantes de automóveis não possam ou não queiram desenvolver

O Territory é produzido pela Jiangling Motors, na China, e vendido como Ford naquele mercado e no Brasil

A pressa na passagem da combustão para eletricidade, seja para atender variadas legislações, seja para satisfazer os consumidores, levou a terceirização a novo patamar. Depois do anúncio de que a Bosch pretende entregar os trens de força no regime plug and play — não importando para quem — para montagem, seja lá onde for, reforçou-se ainda mais a obsolescência do termo fabricante para as marcas de automóveis que conhecemos.

Se antes o uso de empresas de estilo, notadamente italianas, para o projeto de carrocerias era visto como um resquício de quando encarroçadoras e fabricantes de chassis eram entidades distintas, agora, a fabricação independente de motores por empresas como a Bosch ou a brasileira WEB dá outra dimensão à indústria de automóveis como um todo. Não se trata apenas de compartilhar motores entre modelos de um mesmo grupo, mas entre marcas independentes, como já fizeram a BMW e a PSA (com o 1,6-litro turbo ainda usado pela segunda) e fazem hoje Renault e Mercedes com o motor de 1,3 litro.

Nesses casos, porém, ambos os lados são empresas do mesmo ramo, até concorrentes. Caminhões Volkswagen com motores MWM ou Cummins são até cotidiano, mas comprador e vendedor são empresas tradicionais e ambas dominam a tecnologia empregada. A novidade é a entrada de empresas alienígenas oferecendo algo que os fabricantes de automóveis não possam ou não queiram desenvolver, mesmo assim, tornando-se aptos a cumprir metas oficiais.

Carros usam motores elétricos desde que se inventaram os limpadores de para-brisa. Daí vieram os acionadores dos vidros e outros itens de conforto, chegando aos sistemas de direção, sempre a partir de solicitação dos fabricantes de automóveis. As tentativas externas, como a suspensão inteligente eletromagnética da Bose, nunca foram muito bem recebidas — quem sabe, pela intenção de manter a tecnologia dentro de casa.

Dissociar totalmente a produção de componentes do projeto dos modelos finais, num regime de plug and play, na intenção de minimizar o esforço de passagem da combustão para a eletricidade, no entanto, causa uma preocupação de que, em pouco tempo, a indústria não seja nem de fábricas, nem de montadoras — só de marcas.

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A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars

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