Biden acaba de soltar uma bomba que, se tiver o efeito desejado, poderá ser muito pesado para nossas fábricas
Na metade dos anos 1970, surgiu uma escola do pensamento econômico denominada de Expectativas Racionais. A priori, a intenção era contrapor a ideia de ilusão monetária propalada pelo inglês John Maynard Keynes, refutando frontalmente seu pensamento, na crença de que os agentes econômicos anteveem os fatos e antecipam decisões. Concordemos ou não com essas ideias, o principal entre seus ensinamentos é que o agente econômico tende a retaliar políticas públicas, como eles dizem, esterilizando-as. O policy maker precisa saber que não manda nas leis naturais e tem que conviver com elas. É ele fazer e o agente econômico desfazer.
John Biden acaba de soltar uma bomba cujo deslocamento foi bem difícil de absorver. Se tiver o efeito desejado, poderá ser muito mais pesado para nossa indústria de automóveis aguentar; caso contrário, não terá efeito algum, quando não contrário. Se Donald Trump era taxado de protecionista, a medida tributária do sucessor é, em teoria, infinitamente mais contundente.
Ao obrigar a transferência de recursos para os Estados Unidos, o efeito é o dólar subir em relação a todas as moedas do resto do mundo, o que atrai investimentos em larga escala para lá
A notícia é que ele decretou que, além de o balanço das subsidiárias de empresas norte-americanas ser apresentado nos parâmetros da SEC (Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos), o lucro deverá ser taxado na origem, pagando entre 21% e 28% de imposto nos EUA. Explicando melhor, se o resultado da empresa norte-americana com filial no Brasil tiver um lucro de US$ 100 milhões aqui, terá de enviar entre US$ 21 milhões e US$ 28 milhões para compor o imposto de renda da matriz.
Não consegui apurar se o resultado deve ser considerado antes ou depois de pagos os impostos locais, muito menos se a receita será líquida ou bruta — haja vista que os sistemas tributários são díspares e fica difícil, quando não impossível, misturá-los. Ademais, a operação pode ocorrer lucrativamente num país que não detém reservas para a remessa pretendida, bem como a legislação local simplesmente vetar essa prática, mais ou menos como aconteceu com o Brasil nos anos 1980.
A medida visa a financiar um verdadeiro plano Marshall destinado à reconstrução da economia dos Estados Unidos, devastada que foi pela pandemia, assim como pelas medidas de austeridade que a antecederam. O fato é que aquele país já vinha dando sinais de recessão antes de o vírus ser anunciado como um flagelo mundial.
O plano de reconstrução prevê um dispêndio de US$ 3 trilhões, podendo chegar a US$ 4 trilhões nos próximos dois anos. Calcar todo esse gasto somente em títulos da dívida pública, além de encontrar resistência no Congresso, tende a fazer os juros subirem — o que, se não reduz o multiplicador keynesiano, diminui o efeito acelerador da economia, retardando a retomada da normalidade. É, portanto, preciso aumentar a arrecadação em proporção próxima do crescimento esperado, sendo a elevação da alíquota de 21% para 28% para negócios domésticos o maior passo, enquanto a taxação dos negócios ultramarinos tem dois efeitos simultâneos, ambos com a mesma finalidade de manter baixa a taxa de juros.
Subsídio à reconstrução
O primeiro impacto é o aumento nominal da base de arrecadação, esperando-se que o montante também cresça. O segundo é que, obrigando a transferência de recursos para os Estados Unidos, o dólar suba em relação a todas as moedas do resto do mundo, o que faz atrair investimentos em larga escala. Em outras palavras, é uma forma de o resto do mundo subsidiar a reconstrução norte-americana, mais ou menos como aconteceu logo após a Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, algo absolutamente inédito vai acontecer: um país tributar os negócios feitos em outro país, numa vassalagem jamais imaginada.
Anos atrás, publiquei uma matéria em que citava a possibilidade de superavaliação dos produtos importados em counter trade (negócio de balcão), em que são trocados bens num verdadeiro escambo. Ocorre que isso pode ser feito triangularmente. Por hipótese, a General Motors dos Estados Unidos pode importar uma caixa de transmissão por US$ 300 para um Chevrolet fabricado no Brasil, com cobrança na matriz e endereço de entrega em São Caetano do Sul, SP. Enquanto isso, a GM norte-americana emite documento de exportação da caixa, que já foi entregue aqui, por US$ 3.000 e paga os japoneses com algum produto que nem precisa ser do mercado de automóveis, como garrafas de bourbon.
Se o resultado de uma empresa norte-americana com filial no Brasil tiver lucro de US$ 100 milhões aqui, ela terá de enviar entre US$ 21 milhões e US$ 28 milhões para compor o imposto de renda da matriz
Superavaliação leva dólares para os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que a lucratividade no Brasil cai, reduzindo o imposto a pagar aqui, enquanto lá, por tratar-se de exportação, os tributos seriam reduzidos. Além disso, o resultado, inflado pela operação, enseja maior distribuição de lucros, ou eleva o preço dos títulos da dívida, o que for o caso. É que, se a distribuição de lucros atrai investimentos novos, o aumento do valor dos títulos ajuda a financiar a operação, apesar de maus resultados anteriores.
A medida de Biden agrava a necessidade de as empresas dos EUA que operam no exterior mascararem seus lucros, visto que, se demonstrarem lucro na subsidiária, sofrerão bitributações, pois pagaram imposto sobre o mesmo fato gerador nos dois países, não podendo reclamar, nem cá, nem lá.
Por enquanto, não dá para saber como agirão as empresas norte-americanas acerca de suas subsidiárias: se as levarão de volta para os Estados Unidos, como almeja Biden, ou se conseguirão mascarar sua rentabilidade nas subsidiárias, como já se faz no Brasil, pondo a culpa no custo-país. Também não se sabe como reagirão os países em que as subsidiárias se encontram, mais notadamente a China, para onde migrou a produção de muitos veículos que são vendidos nos EUA. Minha opinião — e não dá para ir mais longe que isso — é que muitas empresas poderão ser virtualmente vendidas, deixando de ser norte-americanas para efeito tributário. Isso anularia o efeito da medida, seja ele qual for, pois os mercados costumam ser mais fortes que a vontade do Estado.
Quanto a Trump deixar saudades, só o tempo dirá. Por enquanto, afirmo que, quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece.
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