Indústria de automóveis e aporte de capital, uma luz no fim do túnel

Recursos têm ido dos fundos de investimento para o setor produtivo, sem a necessidade de passar pelos bancos

A flor do capitalismo é a possibilidade de trabalhar com capital de terceiros, aumentando em muito a TIR (taxa interna de retorno), virtualmente, de qualquer projeto ou atividade em andamento. Ao contrário do que era de esperar, seja por aperto na regulação, seja por encontrar caminhos mais fáceis, os bancos abandonaram o papel de canalizador de fundos dos poupadores para os produtores.

A sociedade tem vida própria. Sempre que há algo que ela entende como abuso, retalia, bastando que um gatilho seja pressionado. Desde o Plano Real (1994) os bancos vêm dominando o cenário econômico brasileiro, com enorme custo para a sociedade. Os bancos preferem trabalhar com o crédito direto ao consumidor, cujo spread (a diferença entre o preço de compra e o de venda de uma transação monetária) é altíssimo, alegando-se a assunção do risco de crédito.

Repassar dinheiro do BNDES para novos negócios já não interessa os bancos há muito, pois ficam para eles os custos de análise de projetos, bem como o aval secundário sobre os recursos concedidos

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Esse tipo de empréstimo não precisa de grandes análises, no que se convencionou chamar de “produtos de prateleira”, como se um banco fosse um supermercado em que o bem vendido é o dinheiro. Financiar carros, por exemplo, passa a ser um grande negócio, pois usa-se a capilaridade dos bancos para captar, seja por CDB (certificado de depósito bancário), seja via FIDC (fundo de investimento de crédito ao consumidor).

Já há muito que uma nova ideia não encontra, nos bancos, aporte financeiro capaz de transformar bons projetos em realidade. Isso empurrou todo o financiamento a novos negócios para o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), cujas fontes minguaram desde 2016 e, provavelmente, estarão extintas nos próximos anos.

Repassar dinheiro do BNDES para novos negócios já não interessa os bancos há muito, pois ficam para eles os custos de análise de projetos, bem como o aval secundário sobre os recursos concedidos. O próprio BNDES acaba por adotar produtos de prateleira, como Finame (Agência Especial de Financiamento Industrial) e outros em que a garantia seja real e automática, deixando os projetos de inovação circunscritos a parcerias com instituições públicas e universidades, via Finep (Financiadora de Estudos e Projetos).

Restou o desconto de duplicatas para financiar o fluxo de caixa da indústria intermediária. Grande parte das multinacionais, incluindo as de automóveis, proíbem seus fornecedores de descontar seus títulos, outras obrigam o desconto a ocorrer em bancos parceiros. Quando não há restrições do cliente, os bancos exigem papéis em calção de até 120% do valor descontado. Alijada de trabalhar com capital de terceiros, para manter a TIR em nível aceitável, nossa indústria precisa aumentar a margem — e isso, a meu ver, é o real custo-Brasil de que a mídia não fala, pois está, ela própria, nas mãos das instituições financeiras.

Financiamento não bancário

O setor produtivo vem tomando outros caminhos, no que se chamou de financiamento não bancário, canalizando recursos diretamente dos fundos de investimento para o setor produtivo, sem a necessidade de passar pelos bancos. O processo começou pela agricultura, numa estrutura descrita na matéria passada. Desde 2005 adotou-se a alienação fiduciária para imóveis para o mercado de construção que, então, explodiu.

As leis 13.986/2020 e 14.130/2021, que estendem o mecanismo de venda antecipada até a primeira industrialização, prometem reativar a parte de nossa indústria ligada ao agronegócio, mas o processo poderia ir muito além, financiando a cadeia toda, num mecanismo passo a passo, tornando o país novamente atrativo para a indústria, em especial, a automobilística. As leis acima permitem que a indústria, desde que sendo o primeiro passo fora do agronegócio, funcione como liquidante de CPR (cédulas de produto rural). São exemplos a indústria alcoolquímica e até mesmo as redes de postos de combustível, como discutido na matéria anterior.

Um produtor de componentes poderia emitir cédulas na quantidade de produto correspondente ao custo de produção: a automobilística seria a liquidante e o recurso viria de fundos de investimento

A Bosch, por exemplo, deve saber do movimento do sistema de crédito. Caso contrário, não teria insistido no desenvolvimento, no Brasil, de pilhas a combustível como substituto das enormes baterias necessárias à manutenção do alcance dos carros elétricos. Não que os carros com pilhas a combustível deixem de precisar de baterias: sem um sistema de pulmão (buffer), o veículo não sairia do lugar, pois o processo de conversão de hidrogênio em eletricidade tende a ser mais lento que o dispêndio do carro em arrancadas. A empresa parece acreditar que a cadeia de suprimento de álcool conte com um sistema de crédito capaz de a manter em funcionamento.

Imaginemos agora que o restante da economia aprenda, com o agronegócio, como conseguir recursos para financiar suas atividades, emitindo cédulas de produto ao longo da cadeia produtiva — não importa sua origem, se mineral, vegetal, animal ou simplesmente de serviços. Um produtor de componentes automotivos poderia emitir cédulas na quantidade de produto correspondente ao custo de produção. A automobilística seria a liquidante e o recurso viria de fundos de investimento.

Digamos que uma fábrica de maçanetas tenha custo de produção equivalente a 60% do valor das peças vendidas. Suponhamos agora que ela tenha um pedido de 10 mil conjuntos de maçanetas pelos quais cobrará R$ 100 cada, num total de R$ 1 milhão. Ela pode emitir uma cédula de 6 mil conjuntos, deixando para faturar 4 mil conjuntos na entrega do total de 10 mil. Ora, se a empresa não precisar remunerar os 60% equivalentes ao custo, poderá vender os conjuntos a R$ 80 e, ainda assim, obterá lucro. Extrapolando a atitude para a cadeia como um todo, incluindo exportações, o ganho será evidente, pois elimina-se o spread bancário, tornando o país mais competitivo.

O setor bancário é absurdamente concentrado no Brasil, apesar de surgir a Sicredi (Sistema de Crédito Cooperativo) e pipocarem as fintechs. No começo eram reais bancos digitais, sem agências, tudo pela internet, mas se tornaram repassadores de verbas oriundas dos bancos tradicionais, quase que terceirizando o que se fazia nas agências. Se quisermos ter uma indústria pujante novamente, em vez de reformas trabalhista, previdenciária e tributária, deveríamos ter começado por uma reforma creditícia.

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A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars

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