Quando a fonte seca, os cortes deixam de considerar conhecimento tecnológico, valor de marca e tradição da empresa
Um muro na fronteira dos Estados Unidos com o México para repatriar a produção, detonar acordos multilaterais como o Mercosul e a Inglaterra espernear entre deixar ou não a União Europeia fazem parecer que se pretende voltar à década de 1970, quando a ideia de centro e periferia dominava o pensamento econômico do Terceiro Mundo. Exportar está-se tornando ordem do dia, como quando o barato era o que vendia.
Pode parecer assustador assistir uma tentativa de volta a uma ordem econômica que já se foi, como todos nós e nossas ideias iremos um dia. Não é que os países mais pobres tenham ficado mais ricos, nem que os mais ricos tenham ficado mais pobres. É que a relação mundial de consumo alterou-se profundamente nos últimos 40 anos. No auge dos anos dourados, quando os mapas-múndi continham apenas o Hemisfério Norte e os franceses chamavam todos os países não europeus de la bas (lá embaixo em francês), o consumo do resto do mundo era visto como algo marginal, um dinheirinho a mais que se poderia fazer sem investimento, bastando exportar o obsoleto.
Para os acionistas, o que interessa é a taxa interna de retorno: o rendimento anual médio do investimento tem que ser maior que a taxa de juros
A soma do PIB dos países não desenvolvidos hoje supera o dos então considerados desenvolvidos e a indústria em geral, assim como a de automóveis em particular, passou a depender de como a economia de los pobrecito se comporta para garantir a viabilidade das matrizes. O núcleo do desenvolvimento econômico migrou do fazer para o saber fazer, que caminhou na direção da inovação tecnológica e das vantagens competitivas, deixando para trás o preço dos fatores de produção (terra, capital e trabalho) como atrativos para os investimentos.

Nesse meio tempo, o mundo “financeirizou-se”, ou seja, a variação cambial passou a coeficiente da expectativa de retorno do investimento internacional. Esse conceito ainda não está muito claro para alguns dos mais letrados economistas. É importante entender o pensar dos investidores internacionais de hoje em face do comportamento na antiga ordem mundial, no auge do império norte-americano.
A decisão por investir pode basear-se em maximizar o retorno de caixa ou goodwill, que é a diferença entre o valor cotado a mercado (valor unitário das ações multiplicado pelo número de ações disponíveis) e o patrimônio líquido. Muitas vezes, os dois processos de tomada de decisão caminham juntos, mas em esferas diferentes.
Para os acionistas, o que interessa é a taxa interna de retorno (TIR), ou seja, o rendimento anual médio que o investimento é capaz de proporcionar expresso em percentagem, que tem que ser maior que a taxa de juros. Se ela não for superada, é melhor aplicar o dinheiro em vez de investir. Só para lembrar, aplicar corresponde a poupar, ou seja, deixar o dinheiro numa instituição financeira rendendo juros, enquanto investir corresponde a lançar mão do capital excedente para começar, ampliar ou manter um dado negócio, correndo todos os seus riscos. Assim, dizer que alguém investiu na poupança ou aplicou seu dinheiro numa fábrica são falhas conceituais básicas.
Risco soberano e variação cambial
A taxa interna de retorno corresponde ao valor presente dos saldos em fluxo de caixa no decorrer de um dado período. A ideia de valor presente, como já expliquei em outra matéria, vem de que, quanto mais para a frente as coisas acontecerem, menos elas nos afetam hoje — portanto, têm menos valor. Como dizia o economista britânico John Maynard Keynes, no longo prazo estaremos todos mortos, ou seja, depois de mortos nada vale coisa alguma para nós. Talvez valha para nossos descendentes, mas aí é uma questão de consciência individual e não de administração de um macro negócio como uma indústria de automóveis.
Alguns economistas famosos negam a financeirização, posto que traduzir o futuro em juros que se deixam de ganhar é uma ideia inerente ao pensamento capitalista desde seus primórdios. Ocorre que os detentores do capital deixaram de ser investidores individuais, passando aos fundos de investimento, muito mais próximos do mercado financeiro e de seu modo de pensar do que — digamos — antes das crises do petróleo e da inadimplência internacional dos anos 80. Daí para a frente, duas variáveis inerentes ao pensamento dos financistas passaram a compor a decisão por investir, em especial no exterior: o risco soberano e a variação cambial no país de destino.
Turbulências políticas como a brasileira provocam incerteza: quanto maior o risco, maior será o prêmio necessário a atrair investimentos
É que o investidor quer ver o capital remunerado no país de origem, não no de destino. Assim, o investimento estará afeto à taxa de câmbio no momento da inversão, enquanto as remessas de lucros estarão sujeitas à taxa de câmbio no momento da retirada. Ora, se a moeda local subir em relação à do pais em que se investiu, a remessa cai, reduzindo o retorno; se, ao contrário, a moeda local desvalorizar-se em relação à do pais receptor do investimento, a remessa será maior e o retorno sobe.

Turbulências políticas, como aquela em que o Brasil se meteu desde 2015, provocam incerteza: o risco soberano aumenta e, quanto maior o risco, maior será o prêmio necessário a atrair investimentos. Assim, a ideia de taxa interna de retorno sozinha não capta recursos no exterior, pelo menos, não capital próprio.
O país receptor pode ter um mercado impossível de desprezar. Haverá duas opções: para um risco soberano constante, se a perspectiva de variação cambial for de alta da moeda do destino, lá vai capital próprio; caso contrário, lá vai empréstimo, porque, emprestando, a matriz se protege contra a desvalorização cambial. A China entendeu isso perfeitamente e administra o câmbio, dando a estabilidade necessária a atrair investimento externo a partir de capital próprio, deixando a decisão exclusivamente por conta da TIR.
Enquanto se pode rolar a dívida, o administrador pode manter vistas no máximo goodwill, pois é isso o que lhe dará visibilidade no mercado de trabalho para executivos. Quando a fonte seca, no entanto, a taxa interna de retorno, multiplicada pela expectativa de valorização cambial e pela taxa de risco soberano, torna-se prima donna e os cortes deixam de considerar aspectos imateriais do capital como conhecimento tecnológico, valor de marca e tradição, em troca de poder pagar as contas em dia.
Abandonam-se mercados como o de sedãs (como a Ford fará nos Estados Unidos), fecham-se fábricas (a exemplo das unidades da empresa em São Bernardo do Campo, SP, e na Rússia), fazem-se acordos de colaboração com concorrentes, abandonam-se marcas — como a General Motors fez com Hummer e Pontiac na crise iniciada em 2008. De fato, como diz um amigo meu que trabalha no mercado financeiro, quando falta dinheiro, as pessoas tornam-se irreconhecíveis.
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