O grande gargalo da economia brasileira é o serviço da dívida, mas como isso afeta o mercado e o preço dos veículos?
Atribui-se a Nélson Rodrigues uma frase que, na verdade, é de Plínio Marcos: “Toda a unanimidade é burra”. É uma unanimidade que o carro brasileiro é caro por conta dos tributos, coisa já tratada nesta coluna. Outra unanimidade recorrente é que a dívida pública brasileira é o maior entrave para o desenvolvimento, que se traduz em outra unanimidade: “crescimento em voos de galinha”, assunto esse a discutir sob o ponto de vista da indústria de automóveis.
Não existe quem não tenha dívidas. Quem mora de aluguel deve, pelo menos, a renda ao senhorio. Não há uma empresa sem passivo, visto que ela nasce devendo o capital social. Seria possível um país sem dívidas? Certamente não. Os mais desenvolvidos as têm em alta participação em relação ao Produto Interno Bruto (PIB). Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), em dados de 2018, a dívida pública do Japão é de 238% do PIB e a dos Estados Unidos de 106%, enquanto o Brasil apresenta uma dívida de 77%.
Caso a participação do Estado na economia diminuísse, cairia o preço dos automóveis? O preço é função daquilo que o bem traz de satisfação, não de seu custo
Só que os norte-americanos gastam 7% da arrecadação pública com os juros da dívida, enquanto nós despendemos 53%. Para uma arrecadação de R$ 2 trilhões, é tomado R$ 1,06 trilhão de toda a sociedade para pagar juros a uns poucos bancos e a uma parcela ínfima de nossa população, concentrando renda. Numa percentagem equivalente à dos EUA, nosso Estado gastaria apenas R$ 140 bilhões e teria R$ 920 bilhões a mais para investir, ou o mesmo montante a menos para cobrar em impostos, o que reduziria a participação do Estado de 36% para cerca de 20% do PIB, provavelmente distribuindo renda. De um jeito ou de outro, o grande gargalo da economia brasileira é o serviço da dívida, não seu montante.
Nada garante, porém, que, caso a participação do Estado na economia diminuísse, cairia o preço dos automóveis. É que, à luz da Teoria da Utilidade, o preço é função daquilo que o bem traz de satisfação ao consumidor, não de seu custo. O que se pode dizer é que, caso o serviço da dívida caísse, o empresário teria de procurar outra atividade em que pôr o dinheiro em vez de dar preferência a emprestar para o governo. Sob o ponto de vista keynesiano, mantendo-se os impostos, o Estado, via obras públicas, despenderia um valor maior em investimentos, que por sua vez empregaria mais e, em consequência, puxaria para cima os salários, aumentando o poder aquisitivo.
Numa ótica neoliberal, reduzindo-se os impostos, sobraria mais dinheiro à disposição da sociedade, ampliando o mercado potencial de automóveis. Isso ensejaria mais investimentos em quantidade produzida e tecnologia embarcada, o que, por sua vez, puxa salários para cima e aumenta, da mesma forma, o poder aquisitivo da população. Quando keynesianos e neoliberais concordam em algo, pelo menos no que tange ao efeito de algum fenômeno, o acordo recebe o nome de síntese. Não chega a ser uma unanimidade porque os caminhos são diferentes e, mesmo indo ao mesmo lugar, os debatedores não abrem mão de seus argumentos.
Menos renda
Segundo dados da Fenabrave (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores), a frota brasileira cresceu até 2015, quando se estagnou e caiu entre 2017 e 2018. O Sindipeças (Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores), em seu relatório referente a 2018, indica que a idade média da frota aumentou de 10 para 11 anos de uso, o que faz todo o sentido, consoante as conclusões da Fenabrave. Ocorre que, nesse tempo, a taxa de juros caiu, mas a arrecadação caiu mais ainda, de sorte que o serviço da dívida teve papel crescente na economia brasileira, o que inibe o consumo de automóveis porque há menos renda à disposição da população.
É que a taxa de juros é cobrada somente a partir do lançamento de novos papéis, enquanto os anteriores estão comprometidos à taxa já contratada. Em média, a redução do dispêndio ocorre entre oito meses e um ano depois da variação autorizada pelo Comitê de Política Monetária (Copom). O Estado vê-se num dilema porque, para manter seus papéis com risco-zero, não pode adotar nenhuma medida mais abrupta e que o mercado possa tomar como calote, abalando mortalmente a confiança do investidor.
O mercado de automóveis, se quiser ser competitivo, não pode esperar que todos os papéis de juros mais altos sejam substituídos por mais baratos
Baixar a carga tributária antes de reduzir o serviço da dívida agrava ainda mais o problema porque, quanto menor a arrecadação, maior será a participação dos juros nas despesas do governo, o que faz sobrar menos recursos para o investimento. Isso explica por que, apesar de retomado o crescimento, o ritmo de 36% não foi alcançado, mantendo-se ao redor de 12% em 2019. É que a expectativa incluía a volta da idade da frota ao nível de 2012, ou seja, que as vendas seriam maiores pela reposição dos veículos velhos de forma mais acelerada do que devido ao crescimento do consumo das famílias. Nos dois casos, a distribuição de renda é imprescindível.
O mercado de automóveis, se quiser ser competitivo num cenário de produtividade crescente, não pode esperar por de cinco a 10 anos até que todos os papéis de juros mais altos sejam substituídos por outros mais baratos. Há que se tomarem medidas visando à queda do serviço da dívida. Uma delas é incentivar o crescimento do PIB e a outra é reduzir o depósito compulsório que os bancos fazem ao Banco Central.
Teoricamente, esse depósito visava a regular a moeda em circulação, a fim de controlar a inflação. Ocorreu que, ao longo do tempo, políticos e Poder Judiciário começaram indevidamente a lançar mão desses valores para financiar emendas parlamentares ou para quitar precatórios. Embutiram sub-repticiamente o depósito compulsório no orçamento público, impedindo-o de se reduzir com rapidez, como deve acontecer sempre que o spread se eleva em demasia, ou quando a economia dá sinais de deflação ou, ainda, em caso de queda abrupta de consumo.
O automóvel está no olho do furacão porque, entre todos os itens populares de consumo durável, é o mais caro e o que mais depende da distribuição de renda e do crédito barato. Os brasileiros regozijam-se por haver financiamento com juros de 0,9% ao mês (13,5% ao ano), mas temos um longo caminho a percorrer até que se atinjam os 8% ao ano (0,64% ao mês) que se cobram em países mais civilizados. Enquanto isso não acontecer, nossa indústria dependerá crescentemente das exportações para manter sua viabilidade.
- Esta é a última coluna de 2019, mas tenham a certeza de que minhas promessas serão cumpridas no ano que vem. Tenham todos ótimas festas.