Entre obrigações e proibições, falta de critérios há tempos complica (e onera) a vida de quem tem carro no País
Durante a criação do Universo, Deus teria espalhado catástrofes naturais pelos países e continentes: terremotos aqui, um vulcão ali, tsunamis acolá. Quando criou o Brasil, o anjo a seu lado interveio: “O senhor só escolheu belezas naturais. Não vai pôr nenhuma tragédia?”. O Criador então teria respondido: “Espere só para ver os políticos que vou colocar ali…”.
A piada é antiga, mas plenamente atual — e não precisamos fugir a nosso assunto, os automóveis, para comprovar como estamos mal servidos de governantes e legisladores. Entra ano, sai ano, continuam a nos impor normas sem o devido critério, como se lhes faltasse conhecimento de como carros são fabricados e dirigidos.
Só depois de muito questionamento o Denatran divulgou que as luzes diurnas serão aceitas em lugar dos faróis baixos nas rodovias
O caso mais recente é a Lei 13.290/2016, que exige o uso de faróis baixos por todos os veículos em rodovias. A norma não faz distinção entre trechos rodoviários de fato e aqueles urbanos, como o Eixo Rodoviário que corta Brasília, DF. Com automóveis de faróis acesos em uma via urbana como essa, perde-se a diferenciação entre eles e as motocicletas que rodam pelos corredores. “Agora, quando vejo o farol de uma moto no retrovisor, penso que é um carro e não imagino que posso fechá-la ao mudar de faixa “, comenta o amigo Iran Cartaxo, da capital federal.
E a confusão acerca das luzes de uso diurno? As daytime running lights (DRL) surgiram no exterior — a Finlândia usa desde 1972 — para oferecer uma luz de média intensidade para uso em rodovias, com menor consumo energético que os faróis baixos. Por atuarem apenas na frente, as lanternas traseiras ficam apagadas, o que acentua o acendimento de luzes de freio, e não se prejudica a visualização dos instrumentos do painel. Com o tempo vieram as DRLs por leds, mais econômicas e duráveis, mas alguns modelos ainda usam lâmpadas, como o Fiat 500 e o Jeep Renegade vendidos no Brasil.
Seria natural que a lei previsse as luzes diurnas como alternativa aos faróis baixos, mas o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) se omitiu a respeito e só na véspera da entrada da lei em vigor, depois de muito questionamento, divulgou que as DRLs serão aceitas. O mais importante não foi feito: estabelecer a exigência desse tipo de luz nos novos carros, como fez a União Europeia em 2008 com vigência em 2011.
De extintores a rastreadores
Antes nossa bagunça legislativa se limitasse à questão dos faróis. Há muito mais tempo e sobre diferentes áreas dos veículos, recebemos normas sem o devido critério e jogamos muito dinheiro no lixo por causa delas.
Ainda está fresca na memória a novela dos extintores de incêndio, obrigatórios em veículos de 1970 a 2015, embora fosse muito rara sua exigência em países desenvolvidos. A obrigatoriedade de padrão ABC para veículos novos foi prevista para 2005, derrubada por liminar e adiada para 2009 em veículos novos e 2015 em toda a frota circulante. Contudo, como muitos deixaram a compra para a última hora, no fim de 2014 tais extintores sumiram do mercado.
O Conselho Nacional de Trânsito (Contran) adiou a data de exigência por três vezes, de janeiro para abril, julho e outubro. No fim das contas, aceitou que o extintor de pouco servia e tornou-o facultativo. Quantos milhares compraram extintores ABC, por valores inflados pela demanda muito acima da oferta, durante tantos meses até que os legisladores acordassem? Por que não pensaram a respeito nos 11 anos anteriores?
Mas a bagunça não terminava ali: pela resolução 556 do Contran, se o veículo tiver o extintor ele tem de ser do tipo ABC. Como assim, especificar um item não obrigatório? Será necessário ensinar ao órgão o sentido da palavra “facultativo”?
Motoristas mais antigos vão se lembrar de normas mal elaboradas na década de 1990. A mais famosa é a do kit de primeiros socorros, exigência do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) de 1997 que entrou em vigor em janeiro de 1999. Depois de muita discussão a lei foi derrubada, não sem antes de milhões comprarem caixinhas com tesoura e esparadrapos.
Houve desorganização também sobre encostos de cabeça. A resolução 14 do Contran, em fevereiro de 1998, exigia-os em “todos os assentos dos automóveis, exceto nos centrais” de janeiro de 1999 em diante. Muita gente correu às lojas para instalar encostos em carros usados, no banco traseiro inclusive, não raro com precárias adaptações. Três meses mais tarde, a resolução 44 estabelecia os encostos só em novos projetos de 1999 em diante.
Após muita discussão a lei foi derrubada em 1999, não sem antes de milhões comprarem kits de primeiros socorros
No fim a regra foi afrouxada além do necessário: seria coerente dar um prazo razoável (como dois anos) para os fabricantes aplicarem encostos a todos os carros, mas o Contran exigiu o item apenas em novos projetos, ressalvando que “não se considera como projeto novo a derivação de um mesmo modelo básico”. O que se viu por vários anos foram carros “novos” lançados sem encostos de cabeça traseiros, pois derivados de modelos anteriores à norma.
Se em alguns casos o Contran foi permissivo em excesso, em outros optou por proibição injustificável. Usado nos países de vanguarda desde a década de 1990, o sistema de navegação por satélite (GPS) foi proibido no Brasil em 2003 por sua resolução 153, que vedou o uso de equipamento capaz de gerar imagens ao motorista com a intenção de impedir a exibição de vídeos. Apenas em 2007 a resolução 242 permitiu imagens cartográficas (mapas) e de orientação, assim como imagens de câmeras de auxílio a manobras.
Outro tema nunca saiu do papel: o rastreador obrigatório de veículos. Pela resolução 245 do Contran, de 2009, os novos carros seriam equipados já naquele ano com rastreamento por satélite, cujas ativação e manutenção ficariam a critério do dono do carro. Isso mesmo: todos pagariam pelo dispositivo, mesmo sem ativá-lo. Depois de muita discussão e a proposta pela Anfavea (associação dos fabricantes) de aplicação progressiva a 20% dos carros a cada semestre, o assunto caiu no esquecimento, para alívio de muitos.
E o que dizer das inspeções veiculares, previstas pelo CTB há 19 anos e nunca concretizadas em âmbito nacional? A prefeitura de São Paulo implantou-as para verificar emissões poluentes em 2008, mas deixou de fora veículos fabricados até 2002, logo os mais sujeitos a desgastes e deslizes de manutenção. Como não havia capacidade imediata para verificar toda a frota, o coerente seria começar pelos carros mais usados, não pelos novos.
De qualquer forma, tudo ficou no passado: após se estender a veículos de todos os anos, a inspeção pela empresa Controlar foi encerrada pelo atual prefeito em 2014. Hoje, carros e caminhões novos e velhos estão à vontade para poluir a maior cidade deste país maravilhoso e livre de vulcões e terremotos.
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