Os dois grupos associam-se outra vez, depois das tentativas no Brasil e em Portugal, mas agora pode ser diferente
Para muitos brasileiros, o recente anúncio de cooperação entre a Ford e a Volkswagen tem um sabor de repeteco. No Brasil e na Argentina, os dois fabricantes estiveram associados na Autolatina por oito anos. Outra parceria em Portugal, a Auto Europa, também foi desfeita. Seria diferente dessa vez?
Fusões e cooperações têm sido inevitáveis na indústria automobilística. Desenvolver carros sempre foi caro, mas se torna ainda mais na medida em que se elevam os parâmetros de tecnologia, segurança e emissões (poluentes e de gás carbônico), tanto os exigidos por lei quanto os demandados pelo consumidor. Além disso, os sistemas de condução autônoma e de propulsão elétrica vêm exigindo crescente investimento. Nesse cenário, somar esforços significa subtrair custos e multiplicar resultados. Foram esses fatores que levaram, entre muitas outras, à parceria entre BMW e Toyota para os novos Z4 e Supra.
Aparecia em 1990 o primeiro clone nacional, fruto da “engenharia de logotipo”: o VW Apollo, um Ford Verona com pequenas alterações técnicas e de aparência
E foram esses fatores que conduziram, décadas atrás, Ford e Volkswagen a uma associação aqui e no país vizinho. Formada em 1987, a Autolatina mostrou os primeiros resultados em termos de produto em 1989: o uso de motores de 1,8 litro da alemã nos Fords Escort e Del Rey e, por outro lado, de unidades de 1,6 litro da norte-americana na linha Gol. No ano seguinte aparecia o primeiro clone nacional, fruto da chamada “engenharia de logotipo”: o VW Apollo, nada mais que um Ford Verona com pequenas alterações técnicas e de aparência.
VW Apollo (esquerda) e Ford Versailles: os primeiros clones da Autolatina carregavam a identidade da marca original, não a da que os adotara
A estratégia não foi bem recebida pelos consumidores. Tanto no aspecto quanto nas características de rodagem, o Apollo era estranho ao cliente tradicional da Volkswagen — é preciso ter em perspectiva que até 1990, com o mercado fechado a importações, os brasileiros tinham apenas quatro marcas a escolher e não era rara a fidelidade a uma delas. Amortecedores mais firmes não o faziam parecer um carro alemão, tampouco lanternas traseiras em tom fumê o distinguiam tanto do Verona, e assim sua duração no mercado foi de apenas dois anos.
No sentido contrário, a Volkswagen cedeu seu novo Santana em 1991 à Ford, que dele fez o Versailles. Esse segundo clone foi um pouco além do Apollo, ao receber desenho próprio na traseira. Embora competente como sucessor do decano Del Rey (originário, afinal, do Corcel de 1968), o Versailles não tinha o acabamento e o conforto de marcha a que os clientes Ford estavam habituados. Mais um estranho no ninho.
A estratégia começou a ser questionada quando apareceu sua versão perua Royale, no ano seguinte. Para se diferenciar da Quantum, abria mão de uma das qualidades que distinguiam o modelo da Volkswagen desde o lançamento em 1985: as cinco portas. O resultado foi uma perua com três portas, bem menos elegante e conveniente que sua “prima”, em um tempo no qual os brasileiros já aderiam em massa às portas adicionais em carros maiores. A Autolatina levou três anos para reverter o erro e lançar a Royale com todas as cinco.
Más escolhas
O trabalho em conjunto teve melhores resultados com a nova geração de clones: o sedã Logus, em 1993, e o hatch Pointer, no ano seguinte. Embora tomassem emprestados a plataforma e a mecânica do Escort, esses Volkswagens tinham carroceria toda própria e belos desenhos — mas também problemas.
Primeiro, em nada seguiam os padrões da alemã, tanto na aparência quanto nas características de rodagem. Segundo, reprisavam o erro da Royale: para se distinguir do novo Verona, o Logus só tinha duas portas, enquanto o Pointer impunha cinco em um segmento que ainda não as apreciava, para se afastar do Escort, então com apenas três. Houve outras más escolhas de produto, como relações de marcha e acerto de suspensão, e também problemas de qualidade — alguns comuns ao modelo da Ford, como em braços de suspensão e central elétrica.
O projeto do Gol “bolinha” previa uma versão para a Ford, então sem carro pequeno, mas a rede Volkswagen não quis dividir sua “galinha dos ovos de ouro”
Elogiados pelo estilo, Logus e Pointer ainda tinham o jeito Ford de fazer carros — e número de portas diferente do que o público de cada segmento queria
Ao que se comenta, porém, o que mais abalou a Autolatina foi o caso do “Ford Gol”. O projeto AB9 do Gol de segunda geração (“bolinha”) previa uma versão com desenho próprio para a marca do oval azul, que então estava sem carro pequeno para o segmento de “populares” — arranjava-se com o Hobby, o Escort da geração anterior. Só que as concessionárias Volkswagen protestaram por não querer dividir sua “galinha dos ovos de ouro”, o carro mais vendido no País desde 1987. O projeto foi abortado e a Ford optou pelo Fiesta, importado da Espanha em 1995 em operação tapa-buraco até a produção nacional no ano seguinte.
Após oito anos, o casamento se desfazia. Cada uma partia para desenvolver o que lhe faria falta, como um motor de 1,0 litro para o Gol e um mais potente (o 1,8 importado) para o Escort. Os carros compartilhados teriam mais pouco tempo de produção. A Volkswagen saía menos machucada — a ex-companheira perdera mais participação no mercado.
A “Autolatina” europeia teve menor relevância e vida mais curta que a sul-americana. A Auto Europa foi definida em 1991 e começou a produzir em 1995 seus primeiros carros — as minivans Ford Galaxy, Seat Alhambra e VW Sharan — em Palmela, Portugal. Dissolvida a parceria em 1999, os alemães compraram a outra parte e hoje são feitos ali as minivans do grupo (a Galaxy foi para a Bélgica), o Scirocco e o T-Roc.
Ford Galaxy (esquerda) e VW Sharan começaram juntas e se separaram em quatro anos
Terá a nova cooperação entre os grupos melhor sorte que as anteriores?
Pode ser que sim. Dessa vez, a união nasce em segmentos nos quais um fabricante ainda tem muito o que avançar. A Volkswagen busca experiência e mercado entre veículos comerciais, como furgões e picapes de médio porte, e crescer com eles em países como os Estados Unidos. De sua parte, a Ford ganha ao ter acesso à plataforma MEB de carros elétricos da parceira, o que reduz custos. Ambas serão beneficiadas também ao compartilhar esforços em tecnologias de propulsão e condução autônoma.
Ao menos por enquanto, não se fala em associação completa como a que vimos fracassar aqui. Afinal, imaginar Golf e Focus ou Polo e Fiesta como variações do mesmo projeto, diferenciadas mais na aparência que na essência, representa um grande risco à identidade que cada grupo sedimentou em décadas.
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