A rejeição que muitos hoje têm ao turbo já afetou quatro portas, ar-condicionado e até injeção eletrônica
Os mais jovens podem pensar que estou mentindo, mas é pura verdade: 30 anos atrás, era tão raro alguém comprar um carro de quatro portas no Brasil quanto é hoje alguém sair da concessionária com um zerinho de duas portas. Acredite, até para táxi — que por lógica requer fácil acesso de passageiros — era frequente usarem-se Fuscas e outros modelos só com portas na frente, não raro com a remoção do banco dianteiro direito para compensar a dificuldade de entrada e saída.
Qual a razão desse contrassenso exclusivo dos brasileiros? Em uma palavra, preconceito. Talvez por termos popularizado o automóvel por meio do Volkswagen, talvez pela menor qualidade dos carros da época, os modelos de quatro portas carregaram má fama no Brasil por decênios. Os adeptos a explicações racionais alegavam que peças móveis adicionais e menor rigidez estrutural acentuariam o nível de ruídos com o uso, mas a causa mais provável da rejeição é mesmo emocional: a maioria preferia a aparência mais informal e agradável dos duas-portas da época, quando era comum essa carroceria ter o formato de cupê em vez do retilíneo sedã. Basta comparar ambas as versões do Chevrolet Opala ou do primeiro Ford Corcel para compreender.
Era comum quem preferisse fazer força nas manobras com um sistema convencional a optar pela “perigosa” direção assistida

Por um motivo ou outro, o fato é que as quatro portas caíram em desuso até em carros familiares como as peruas: ficamos sem tal opção nelas durante mais de 20 anos, do fim da Simca Jangada à estreia da Volkswagen Quantum. Diversos modelos de duas portas que não teriam demanda no exterior foram desenvolvidos para o Brasil, como Chevrolet Monza hatch, VW Santana e Fiat Tempra. A situação só começou a mudar nas décadas de 1980 e 1990, quando a comodidade voltou a carros menores, até chegarmos ao atual cenário em que um diminuto Fiat Mobi pode ser oferecido só com cinco portas.
Mas não apenas o número de portas causou rejeição nos brasileiros nesses 60 anos de indústria automobilística: vários outros itens de conforto ou tecnologia enfrentaram preconceitos.
Direção com assistência (então apenas hidráulica, hoje também elétrica ou eletro-hidráulica) foi malvista por muito tempo. Surgida entre nós em grandes carros norte-americanos e depois em nacionais da mesma origem, como o Ford Galaxie, era comum que ficasse leve demais em velocidades de rodovia e transmitisse insegurança. Nos anos 70 apareceu a assistência progressiva, que se atenuava ao andar mais rápido, mas levou tempo até que se estendesse a todos os modelos. Assim, na década seguinte ainda era comum quem preferisse fazer força nas manobras com um sistema convencional a optar pela “perigosa” direção assistida.
Coisa de preguiçoso
Outra vítima de preconceito — até mais duradouro — foi a transmissão automática. Também originária dos Estados Unidos, foi por decênios associada a grande prejuízo ao desempenho e ao consumo de combustível, além da probabilidade de manutenções onerosas e difíceis. Nada disso era exatamente falso, embora sempre haja algum exagero na má fama que certas coisas adquirem.
Como no caso da direção, parte do processo de aceitação resultou da própria evolução do sistema. As caixas ganharam mais marchas (já eram quatro no Dodge Polara de 1980) e controle eletrônico (Ford Del Rey, 1983), sua eficiência aumentou e a manutenção, embora ainda especializada, se tornou mais simples e fácil de encontrar. Hoje temos transmissões automáticas que deixam o carro mais rápido em aceleração que a versão de caixa manual e, no caso das automatizadas, o consumo costuma ser o mesmo — se não mais baixo.
Havia ainda a alegação de que as mudanças automáticas tiravam controle do motorista e dificultavam a seleção de marchas mais baixas, como para obter freio-motor em declives. Isso mudou com o advento das mudanças manuais pela alavanca ou via comandos junto ao volante. Mais que isso, a calibração apurada das transmissões tem dispensado a operação manual: a caixa adapta-se ao modo de dirigir, até reduzindo em caso de uso intenso dos freios, e atende muito bem à direção mais empolgada. A alcunha de “coisa para norte-americano preguiçoso” ficou no passado.
Quando surgiu a injeção eletrônica, ouvia-se sobre o receio de que uma falha qualquer deixasse o carro imobilizado, longe de qualquer assistência
Como ficaram para trás as noções de que ar-condicionado faz mal à saúde e de que só carros com motor potente podem tê-lo, tal a perda de desempenho. Sobre a primeira questão, bastou a difusão do uso consciente: desviar o ar frio do rosto, selecionar temperatura interna não muito abaixo da externa, evitar o uso da recirculação de ar por longo tempo. Sobre a segunda, os sistemas tornaram-se mais eficientes e surgiu a interrupção do compressor ao se acelerar a pleno — o que permitiu o uso sem traumas até nos modelos de 1,0 litro dos anos 90, como o Fiat Uno Mille, precursor na oferta do item.

Rejeição também sofreu no início a injeção eletrônica. Quem acompanha o mercado desde seu surgimento no VW Gol GTI, em 1989, ouviu sobre o receio de que uma falha qualquer — como um sensor fora de ação — deixasse o carro imobilizado e o motorista a pé, talvez a centenas de quilômetros de qualquer assistência capacitada. Não demorou muito, porém, para o público se convencer que a injeção era robusta, menos propensa a falhas que o carburador (o qual ela substituiu) e planejada de forma a manter o motor em funcionamento, ainda que limitado em desempenho, até a chegada a um serviço competente.
Pouco depois da injeção, em 1991, tivemos os primeiros carros nacionais com catalisador, necessário na maioria dos casos para atender às normas de emissões poluentes (não era obrigatório: alguns modelos puderam seguir sem ele até o fim de 1996). Logo foi considerado vilão do desempenho e do consumo, pela maior contrapressão do sistema de escapamento (não era tanto assim), e causou um odor típico de ovo podre em alguns casos, o que a melhoria da qualidade da gasolina eliminou.
Havia também o receio, não infundado, de que se danificasse pelo uso de mistura ar-combustível muito rica, como ao rodar por longo tempo com o afogador acionado: nesse caso os elementos internos se fundiriam pela temperatura excessiva e seria preciso retirar o catalisador ou serrar o escapamento antes dele para seguir viagem. À medida que foi associado à injeção, o item ganhou eficiência e durabilidade e hoje ninguém se incomoda com ele.
E chegamos aos dias atuais com um novo alvo de preconceitos: o turbocompressor. Embora equipe carros nacionais desde 1994 (Uno Turbo) e já existisse antes em picapes e adaptações a automóveis, ainda é visto por muitos como um sistema que reduz a vida útil do motor e pode exigir manutenção onerosa e especializada a médio prazo. Alguns devem associá-lo até hoje a “carros de boy” usados em arrancadas pelas ruas, mesmo que ele esteja em comportados sedãs e utilitários esporte e tenha comportamento cada vez mais progressivo, sem os sobressaltos dos antigos sistemas.
Poderá o turbo vencer a rejeição e ganhar respeito no mercado de usados, como ocorreu com quatro portas, direção assistida, transmissão automática, ar-condicionado, injeção eletrônica e catalisador? O tempo dirá.
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