Quem contesta os automóveis elétricos e reclama de
sua autonomia não compreende, na verdade, sua proposta
A esmagadora maioria dos apartamentos novos vendidos na cidade de São Paulo tem piscina. Quando você olha aqueles prospectos das construtoras, entregues pelas mocinhas nos semáforos aos fins de semana, as ilustrações mostram claramente a piscina em destaque, com famílias felizes tomando um refrescante banho com seus filhos num dia ensolarado. Isso é o que a propaganda inventa como experiência — a realidade é um pouco diferente.
Nos (muitos) anos em que vivo em prédios com piscina, desci apenas uma vez. E meus vizinhos parecem ter o mesmo hábito: a piscina fica limpa, mas vazia na quase totalidade dos dias do ano. Vários são os fatores, mas entre os principais estão o excesso de atividades e compromissos aos fins de semana, a tendência a sermos cada vez menos sociáveis e até mesmo o clima, que insiste em tirar sarro da cara de quem trabalha — esfria, venta e chove aos sábados, domingos e feriados, enquanto durante a semana…
Em 1992 uma perua de duas portas, difícil de entrar, era algo tão supostamente normal quanto fumar em cima de um bebê nos anos 60, 70…
Essa introdução parece descabida para o assunto, mas vem à minha cabeça sempre que leio informações sobre os veículos elétricos no Brasil. E confirma-se ainda mais quando se leem comentários dos leitores interagindo, como aconteceu há poucos dias com a avaliação dos modelos elétricos da Renault.
Não seria todo errado se afirmássemos que já há muito preconceito em relação a esse tipo de carro, antes mesmo que o primeiro deles comece a ser vendido no Brasil, e que tal visão preconceituosa é fruto direto da desinformação técnica e de uma habitual rejeição ao novo. Basta lembrarmos o medo terrível que tínhamos dos carros de quatro portas até a década de 1980. “Só servem para táxi”, “são inseguros para crianças no banco traseiro”, “fazem um monte de ruídos”, e por aí seguia a lista de argumentos para que eles encalhassem nas concessionárias.
Hoje é fácil olhar para uma Ford Royale 1992, duas-portas, e dar risada do alto da arrogância de quem exige as portas traseiras de um carro familiar da mesma forma que um ar-condicionado. Mas, em 1992, uma perua difícil de entrar, com o passageiro se espremendo contra o encosto dianteiro, era algo tão supostamente normal quanto fumar dentro de casa, no carro e até em cima de um bebê nos anos 60, 70…
E a injeção eletrônica, então? Quando surgiu por aqui, no fim da mesma década de 1980, muitos imaginavam que aqueles processadores poderiam pifar no meio da estrada, deixando o motorista a pé, e que em alguns anos se tornaria inviável manter um carro com eletrônica tão sofisticada. Sabemos hoje que nada disso aconteceu: que os sistemas são confiáveis, que mantêm o funcionamento mesmo em caso de falhas e que sua manutenção pode ser feita normalmente fora das concessionárias. Quem hoje quer voltar ao carburador?
Piscina na Patagônia
Mas tão pernicioso quanto o julgamento antecipado que vem da desinformação e do medo de novidade é aquele derivado do consumo errado, ou seja, quando compro (ou tenciono comprar) algo inadequado às minhas necessidades. Com o veículo elétrico parece acontecer isso. Publicidade de foco incorreto? Erros na estratégia de popularização da tecnologia?
Li comentários de leitores que se dizem contra os elétricos porque eles têm autonomia reduzida. Um deles exemplificou citando os taxistas que experimentam unidades do Nissan Leaf em São Paulo e no Rio de Janeiro e que reclamam dos carros, já que andam um pouco e logo têm que parar por quatro horas para carregar a bateria. Ora, recorrendo à piscina, um Leaf para um taxista é tão adequado quando comprar uma casa com piscina na Patagônia.
Os veículos elétricos ainda têm, sim, uma autonomia reduzida quando comparados aos similares a combustão. Mas carros como o Leaf e os Renaults Zoe e Twizy não são pensados para essa proposta. Usando o meu exemplo mais uma vez, seriam carros adequadíssimos. Trabalho a 9 km de distância da minha residência e uso o carro diariamente. Não disponho de estatísticas oficiais nas mãos, mas boa parte dos meus colegas de escritório moram a distâncias equivalentes — no máximo a 50 km do trabalho, em cidades próximas.
Para usuários a quem a autonomia é um fator crítico, há os híbridos como o consagrado Toyota Prius, cujo objetivo é diminuir o uso do combustível
Um veículo com autonomia de 150 km seria mais que suficiente a uma parcela considerável dos usuários urbanos de automóveis, cujo carro fica mais tempo parado na garagem que andando pela rua. Dá para permanecer durante a pausa conectado à tomada, em casa ou (se necessário) no trabalho. Fico me perguntando quem teve a brilhante ideia de dar um Nissan Leaf a um taxista… Bela forma de propalar as vantagens dos elétricos.
Para esse tipo de usuário, a quem a autonomia é um fator crítico, há os híbridos como o consagrado Toyota Prius, cujo objetivo é usar a tecnologia das baterias e dos motores elétricos para diminuir o uso do combustível e estender a autonomia do carro. Ou seja: entende-se como uma tarefa ainda difícil, do ponto de vista da engenharia, haver baterias leves e baratas o bastante para dar uma autonomia de 500 km a um carro.
Logo, usa-se um conjunto de engenhocas muito bem pensadas — e que variam de um modelo de híbrido para outro — que empregam a eletricidade para racionar o uso do combustível e reduzir as emissões de poluentes e de gás carbônico. Pergunte aos taxistas paulistas que usam o Prius no programa oficial de testes da Prefeitura o que eles acham da ideia. É como comprar uma casa com piscina numa capital do Nordeste: o perfeito alinhamento da proposta com a necessidade.
O que mais me surpreende ao ler as matérias sobre elétricos e híbridos é a atmosfera que paira — de certa indignação — entre os que levantam todo tipo de inadequação e pretensos problemas para rotular carros que, ao que me parece, eles nem ao menos sabem como são. Manutenção complexa, baterias de substituição cara e vida útil curta, cargas demoradas, toda a sorte de insatisfações? Ora, quais deles têm ou convivem com elétricos?
É dura a vida de quem deseja quebrar o vínculo com o passado, como o grupo Renault. Quem fala assim dos elétricos age igual a mim quando comprei apartamento: exigi piscina e nunca molhei meu pé ali. Reclamam que 100 km com uma carga é pouco, mas andam menos de vinte por cento disso todo dia.
Coluna anterior |