O tempo parou para a Kombi e só sentimos sua idade
na hora do adeus, quando se quebrou a mágica enfeitiçada
Se pudéssemos criar uma analogia, estilo conto de fadas, para que se entenda a longevidade da Kombi brasileira, poderíamos fazê-la com a Miss Brasil 1957, a amazonense Terezinha Morango. Tente imaginar uma história fantástica, bem ao estilo José Saramago, na qual aquela Miss Brasil de 1957 parou de envelhecer de forma mágica e manteve-se a mesmíssima mulher por todos esses longos anos.
Os homens, hipnotizados por sua beleza e formas femininas, por muitos anos consideraram Terezinha Morango o “modelo” de mulher a ser copiado. O mundo evoluiu, as mulheres comemoraram sua libertação sexual, saíram dos lares e foram trabalhar, ficaram mais longilíneas, mais magras, resolveram valorizar bumbum e seios, aplicando próteses para parecerem mais sexy.
No entanto, a empresa que organiza o concurso considera que a Miss Brasil 1957 é uma mulher ideal, mágica, que não envelhece nunca, e insiste em fazê-la ganhar o concurso todo ano, com o mesmo padrão corporal, roupas e cabelo modelo 1957. Você tenta se apaixonar por aquela menina nova da passarela, com um corpinho mais esguio, bolsas infláveis, mais espaço traseiro, mais segura de si, mais antenada… mas, nas ruas, na TV, nas revistas, lá está a Miss Brasil 1957.
Ela se aposentou porque algum legislador desfez a mágica: se dependesse do organizador do concurso, duraria mais 60 anos
Todos acham que é melhor manter do jeito que está, votam na Terezinha Morango e ela ganha, todo ano. A empresa concorda, já que a audiência é confortavelmente estável. Para manter a mágica, todos os processos de embelezamento de 1950 são mantidos — laquê, touca térmica, bobes no cabelo. As mulheres atuais já usam até alisamento térmico ionizante, mas um salão de beleza à moda antiga é mantido especialmente para ela, em São Bernardo do Campo, SP.
Até que em 2013 a mágica (como toda mágica enfeitiçada) acaba. Todos querem continuar com a Terezinha Morango, ainda mais a organizadora do concurso, mas seus muitos anos de idade parecem surgir à tona, de repente. Uma plástica radical seria cara demais para adaptá-la ao padrão de beleza do século 21. A pele envelhecida não possibilita muitas manobras e as tornam até arriscadas.
Então, a dona do concurso decide aposentar a Miss Brasil 1957 e desativa o salão de São Bernardo. Como consolo aos fãs, prepara um último desfile, com 600 ingressos numerados ao módico custo de R$ 85 mil. E que fique claro que ela se aposentou porque algum legislador desfez a mágica. Se dependesse do organizador do concurso, ela duraria mais 60 anos. Afinal, quem é que não quer audiência garantida com a mesma fórmula mágica de meados do século passado…
Sessentinha com pouca plástica
Ela envelheceu bem, é inegável. Parece que foi rápido, mas se passaram décadas e décadas. Sobreviver quase sessentinha com tão pouca plástica é coisa para poucas. Se formos ainda mais indulgentes, dá para dizer que suas linhas são quase contemporâneas, indeléveis. Forma e função fazendo um par incrível, com uma história muitíssimo bem-sucedida. Viveu bem mais (muitíssimo mais!) no Brasil que em outros lugares, ajudada por um conjunto quase impossível de fatores — falta de competidoras, robustez, manutenção fácil e barata.
Se o nome disso não for mágica, não sei qual é. Aprendemos a amar a Kombi, ou fomos praticamente forçados a amar a Kombi, por falta de algo melhor? São duas visões sobre o mesmo problema. O bonito da vida é, mesmo, essa dicotomia. Conseguimos obter um interessante exercício filosofando sobre o ocaso desse pequeno dinossauro automotor.
Ela é antiquada, insegura para os padrões de hoje — fruto de sua genética paleolítica, claro. Como tudo tem dois lados, a mesma genética deu à Kombi o segredo de sua longevidade: o diminuto e resistente motor boxer refrigerado a ar (abandonado há alguns anos, também por força da legislação), uma estrutura monobloco com aproveitamento ímpar de espaço, a mesma robustez de suspensão do consagradíssimo Fusca.
Fora daqui, a Volkswagen a modernizava com passos às vezes radicais; por aqui, foi ficando — no terreno dela, ninguém pisava
Esse segredo tornou a Kombi a namoradinha do Brasil. Ela nasceu em 1950 e logo após passou a figurar por aqui, até ser fabricada com 50% de nacionalização, de setembro de 1957 em diante. Fora daqui, a Volkswagen a modernizava com passos às vezes radicais. Por aqui, foi ficando. No terreno dela, ninguém pisava. Se tinha alguém para amar, tinha de ser ela.
Sua modularidade era mesmo incrível. Possibilitou versões de passageiros, picape (com caçambas de aço e madeira), picape com cabine dupla, furgão, sem contar um sem-número de versões adaptadas a trailers e carrocerias feitas por terceiros. Com motor em cima das rodas de tração, subia ladeiras enlameadas como nenhuma picape de tração 4×2. Sem um volumoso diferencial no eixo motriz, passava sobre “facões“ que faziam as outras encalharem. E ainda transportava um peso praticamente igual ao seu próprio.
Impossível dizer o quanto a Kombi foi estratégica para a VW, enquanto seu portfólio de produtos compartilhava a mesma proposta de valor: robustez compatível com o maltratado solo brasileiro, mecânica espartana, manutenção acessível. Toda a publicidade da Kombi até os anos 70 insistia em associá-la ao Fusca, de quem tomava emprestados os bons paradigmas mecânicos. Na medida em que o Fusca se tornava obsoleto, a Kombi também mostrava os sinais do tempo.
Quando vi a foto da Miss Brasil 1957 com aquela blusinha branca e saia azul dando tchau, marejei os olhos. Tão idosa, mas tão simpática. Pensei: “Essa teve uma vida dura”. Daí olhei aquele rádio modernoso com conexão Bluetooth e senti como se tivessem metido um silicone nos seios da minha avó.
Ah, Kombi… Você vai fazer muita falta no imaginário dos homens brasileiros.
Coluna anterior |