Como discutirmos um tráfego mais seguro sem que as pessoas pratiquem os conceitos de respeito ao próximo?
Esqueça o trânsito. Olhe em volta e veja como está sua cidade. Repare nas paredes pichadas, no lixo jogado pelo chão, nas montanhas de entulho e guarde essa informação. Depois entre no transporte público, que pode ser metrô, ônibus, trem, e note como as pessoas se comportam. Mais ainda, fique no pé de uma escada rolante ou na saída de um elevador e veja como as pessoas se posicionam.
Olhe bem e responda: o que há de errado com as pessoas?
Faz pelo menos 25 anos que estudo seriamente o tema “segurança no trânsito”. Não sou formado no assunto, nem fiz curso específico sobre o tema, mas sou formado em comunicação social e estudei várias disciplinas diretamente envolvidas com comportamento humano. Depois participei de centenas de fóruns, debates, palestras, simpósios, sempre com especialistas no assunto, cada um mostrando um aspecto novo sobre o tema.
O trânsito nada mais é do que um conjunto de regras para permitir a organização social e, como tal, exige educação, respeito ao próximo e amor à vida
Já participei de reuniões de vítimas de acidentes, já visitei centros de reabilitação, li algumas centenas de artigos relacionados, além de ter viajado por países com culturas bem diferentes — e até mesmo pelo interior do Brasil, que parece mesmo outro país, para não dizer outro planeta. Mas nesse enorme amontoado de informação jamais li nada a respeito da relação entre trânsito e educação social. As abordagens são sempre técnicas, baseadas em estatísticas quantitativas, números, números e mais números.
Assisti a especialistas de várias áreas do conhecimento, cientistas sociais, antropólogos, engenheiros, médicos, psicólogos, filósofos, arquitetos, projetando belos quadros em Power Point, com gráficos, coordenadas, curvas, estudos, análises, balanços e fotografias, mas nunca vi nada relacionando trânsito com a qualidade do material humano.
Não sei se é a aproximação com a velhice ou a carga maior de tempo livre, mas me descobri um pensador. Talvez seja esse o maior benefício de usar moto e bicicleta: passamos a maior parte do tempo sem poder conversar com ninguém, o que nos obriga a pensar mais do que falar. Isso é ótimo, porque o pensar traz reflexão e análise. E a conclusão a que cheguei é muito simples: não se melhora o trânsito de uma cidade — ou um país — sem melhorar as pessoas.
Já há uns 10 anos escrevi uma frase que abre minhas palestras: “O trânsito nada mais é do que um conjunto de regras para permitir a organização social. E como tal exige atitudes como educação, respeito ao próximo e amor à vida”. É exatamente como acontece em um clube, condomínio, escola, qualquer ambiente que tenha convívio social. Da mesma forma que não é preciso proibir que alguém vá a um velório de biquíni, porque parece socialmente claro que não é a vestimenta adequada, no convívio social existem vários modelos de comportamento que não precisam estar escritos em um código. É a tal convenção social.
Por exemplo, não está escrito em nenhum lugar que as pessoas precisam esperar os outros passageiros saírem do vagão do metrô ou do elevador para que elas possam entrar. Isso parece óbvio demais — menos para aquelas pessoas que acham normal ir a um funeral de biquíni.
Adeus, sociedade
Essas pequenas convenções sociais não precisam estar escritas em um manual ou mesmo em um código legislativo: são atitudes que se esperam pela simples observação. A menos que seja uma sociedade cega, surda e muda.
Não vou gastar sua paciência com teorias que nos conduziram a esse ponto — deixo isso aos especialistas. O que posso observar é a enorme perda de tempo e de dinheiro em debates sobre o trânsito que deixam de fora o elemento humano, como se o trânsito fosse formado apenas por carros, motos, caminhões, bicicletas e ônibus.
Algum fenômeno está impedindo que esses especialistas vejam algo tão óbvio: o trânsito é formado por pessoas! E pessoas cada vez menos preocupadas com a coletividade e mais consigo mesmas.
As pessoas só mudam quando substituem velhos hábitos por novos, e hábito se cria na base — ou, depois de grande, com enorme força de vontade
A moça não quer abrir mão da película solar irregular no carro por lhe dar sensação de segurança, mesmo que possa causar um atropelamento ou colisão, porque a segurança pessoal está acima da coletiva. O rapaz não quer abrir mão do escapamento barulhento em sua moto, porque isso causa a (falsa) sensação de segurança ou atende sua vontade de chamar atenção, mesmo que perturbe todos os outros em volta. O ciclista não quer ficar parado no semáforo porque bicicleta não tem placa, logo não precisa seguir leis, e os entregadores estacionam os caminhões ou peruas em locais proibidos para facilitar a vida deles, mesmo que coloquem os outros em risco.
Poderia enumerar centenas de exemplos para mostrar a mais evidente das conclusões: a cada geração, mais as pessoas deixam de pensar na coletividade e cada um cuida de si. Que sociedade pode evoluir com esse pensamento?
Para referendar essa cegueira estratégica temos ainda os projetos de lei que tentam dar ao trânsito uma conotação mais segura, quando na verdade são grandes placebos que jamais tratam a doença, apenas disfarçam os sintomas. Chegamos ao ponto em que se tornou obrigatório o uso do farol aceso durante o dia nas rodovias (medida corretíssima), mas nas cidades muitos motoristas rodam com faróis apagados à noite.
A redução da velocidade é outra cegueira estratégica. Antes tínhamos motoristas mal educados rodando a 60 km/h — hoje esses motoristas continuam mal educados, mas a 50 km/h. Imagine uma casa com uma goteira no teto. Pode-se resolver de duas formas: consertando o telhado ou aumentando o tamanho do balde. Apenas reduzir a velocidade é equivalente a aumentar o tamanho do balde, porque o problema continua, só não vai estragar o carpete.
Para fins de estatísticas é bom constatarmos que o número de vítimas reduziu, mas eu gostaria que o número de acidentes diminuísse. Claro que é melhor ver menos gente se machucando, mas melhor seria reduzir as ocorrências, porque quem não se acidenta também não se machuca. Mas acho que nem minha geração, nem as das minhas filhas ou dos eventuais netos verá uma mudança nesse aspecto, porque os burocratas ainda insistem em ver o trânsito como algo fora da sociedade.
Qual a dificuldade em ver que o trânsito nunca vai mudar se as pessoas não mudarem?
Só que as pessoas não mudam simplesmente lendo textos na internet ou recebendo pacotes de multas em casa. As pessoas mudam quando substituem velhos hábitos por novos. E hábito é uma condição que se cria na base — ou, depois de grande, à custa de uma enorme força de vontade.
Só acredito na melhoria do trânsito com um trabalho a longo prazo de mudança de hábito nas pessoas. Quando elas entenderem que é preciso esperar outras saírem do vagão para só depois entrar. Quando perceberem que não podem ficar lado a lado nas escadas rolantes, pois precisam deixar um lado livre. Quando acabarem as pichações, não houver mais embalagem de picolé jogada no chão, escapamentos barulhentos nem películas irregulares nos vidros.
Em suma, só se muda uma sociedade com muito investimento na formação de cidadãos mais educados. Já passou da hora de começar.
P.S.: Este texto foi escrito antes do homicídio provocado por pichadores em São Paulo. Mas fica a questão: quem picha — e mata — tem condições de ser um motorista bem educado?
Coluna anteriorGeraldo Tite Simões é jornalista e instrutor de pilotagem dos cursos Abtrans e Speed Master
A coluna expressa as opiniões do colunista e não as do Best Cars