A receita do primeiro Chevrolet Blazer foi seguida pela Chrysler,
que ofereceu grandes V8 em um utilitário com foco na descontração
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Estender o teto até a traseira, acrescentar bancos, forrações e vidros e transformar uma picape pesada em uma espécie de perua com aptidão para todo terreno, para tracionar reboques ou simplesmente para viajar com a família em meio a muito espaço. Essa fórmula não é nova para os muitos brasileiros que viveram na década de 1980 a fase de ouro das picapes transformadas, algumas delas decoradas como motéis e vendidas a preço de bons apartamentos.
O conceito surgiu, como se imagina, nos Estados Unidos, onde em 1969 a Chevrolet lançou o K5 Blazer sobre o chassi de suas grandes picapes. Era sua forma de responder ao International Harvester Scout de 1961 e ao Ford Bronco de 1966, que usavam carrocerias próprias. Em 1974 chegava a vez da Dodge, então a marca do grupo Chrysler mais voltada a picapes — a Jeep, apesar de sua tradição em 4×4 que vem desde os anos 40, era coadjuvante nesse assunto.
Motores de seis e oito cilindros e até 7,2 litros estavam no catálogo do Ramcharger,
de início apenas com tração 4×4; à direita, com a grade adotada no modelo 1977
A partir do chassi das picapes série D de 1972 com distância entre eixos reduzida foi desenvolvido o Ramcharger, dentro da receita que se tornaria famosa pela sigla SUV — sport-utility vehicle ou veículo utilitário esporte, na conotação de lazer. Tinha apenas duas portas e uma cobertura na traseira — com apenas um longo vidro de cada lado — que podia ser removida, tornando-o algo como uma picape conversível. Havia opção de capota de lona com janelas para retirada mais fácil.
A tração integral permanente mantinha sua
função em pisos de grande aderência,
mas o Ramcharger era tradicional na mecânica
As linhas eram simples e elegantes para a época, com faróis circulares, para-choques cromados e opção de pintura em dois tons. A tampa traseira abria-se como a das caçambas de picapes, enquanto a parte superior movia-se para cima. No interior, o jeito descontraído estava evidente nos dois bancos dianteiros individuais (com opção por um inteiriço, mesmo tipo do banco traseiro opcional) e na pequena geladeira no console central. Outros itens oferecidos eram ar-condicionado, direção assistida, rádio, controlador de velocidade, rodas esportivas com pneus mais largos e diferencial autobloqueante. A divisão Plymouth, que em geral oferecia carros mais baratos no grupo, teve sua versão com o nome Trail Duster.
Cinco motores estavam disponíveis: o Slant Six (alusão à posição inclinada no cofre) de seis cilindros em linha e 225 pol³ (3,7 litros), com potência de 105 cv e torque de 23,3 m.kgf; o V8 de 318 pol³ (5,2 litros), com 155 cv e 35,2 m.kgf; o de 360 pol³ (5,9 litros), com 210 cv e 39,4 m.kgf; o de 400 pol³ (6,6 litros), menos potente com 185 cv, mas de torque superior (42,2 m.kgf); e o de 440 pol³ (7,2 litros), com 235 cv e 48,4 m.kgf — todos alimentados por carburador, de um a quatro corpos, e dotados de comando de válvulas no bloco. Os valores já seguiam a medição líquida. A caixa de câmbio automática Torqueflite de três marchas era alternativa à manual de quatro.
A mecânica previa eixos rígidos no caso da versão 4×4; opções de acabamento não
faltavam; à direita, a versão Trail Duster do utilitário vendida pela Plymouth
Recurso incomum à época era a tração integral permanente, que mantinha sua função em pisos de grande aderência (sistemas temporários, em geral, precisam ser desativados em asfalto seco sob risco de danos). O motorista dispunha de quatro posições de uso: High (alta), High Loc (com divisão fixa de torque meio a meio entre os eixos), Low (reduzida) e Low Loc. De resto, o Ramcharger era tradicional na mecânica, com carroceria sobre chassi, suspensões com eixos rígidos e feixes de molas semielípticas, freios a disco só na frente e rodas de 15 ou 16 pol.
A versão com tração apenas traseira entrava no catálogo em 1975, com suspensão dianteira independente com molas helicoidais. No mesmo ano o painel era redesenhado e o pacote SE acrescentava itens estéticos e comodidades internas. As primeiras alterações visuais vinham no modelo 1977, com nova grade e as luzes de direção dianteiras montadas entre ela e os faróis. Para o ano seguinte vinham volante ajustável em altura e o pacote Macho, com rodas largas, adesivos e a proposta, segundo a Dodge, de “transformar uma ida ao supermercado em aventura”.
A frente era alvo outra vez de mudanças no Ramcharger 1979, que adotava quatro faróis retangulares, empilhados dois a dois, na versão SE. Novos itens de conforto eram teto solar de vidro e trava elétrica das portas. Um suporte de estepe externo podia ser montado, liberando espaço no porta-malas (a posição original era na lateral interna), e até uma grande pá frontal para remoção de neve da estrada estava disponível. Os grandes motores 400 e 440 deixavam de equipá-lo e os demais estavam menos potentes, com 145 cv para o V8 318 e 160 cv para a versão 360.
Frente com quatro faróis vinha no pacote SE para 1979; os catálogos deixam
clara a proposta de uso para lazer, com direito a uma geladeira entre os bancos
Direção assistida vinha de série em 1980 com a tração integral. O sistema permanente dava lugar a um temporário, mais simples e leve — de início acionado só com o carro parado, mas em 1985 a Dodge habilitaria a aplicação a até 88 km/h. Nesse ano a revista Popular Science comparou-o a cinco utilitários de duas portas: AMC Jeep Cherokee, International Harvester Traveler e os citados Blazer, Bronco e Scout. O Dodge foi elogiado pelo espaço e mostrou bons freios, mas desagradou na aceleração (segunda mais lenta, à frente só do Traveler a diesel), no conforto de rodagem e no nível de ruído. “Ele é grande, mas fácil de controlar no asfalto e fora de estrada; responde rápido e de forma previsível aos comandos de direção. Os bancos dianteiros equivalem-se aos dos outros, mas o acesso à parte traseira não”, observou.
O desenho do utilitário vinha renovado em 1981 para acompanhar a nova série de picapes Ram, o que trazia dois faróis retangulares, um adorno do carneiro (ram em inglês) sobre o capô e para-lamas mais salientes (antes destacavam as caixas de roda). A capota removível pertencia ao passado, o que acabou com a descontração de rodar aberto, mas o deixou com melhor acabamento e permitiu que os vidros traseiros subissem alguns centímetros pelo teto. De acordo com a fábrica, só 2% dos usuários removiam a antiga capota.
A tampa traseira, agora em peça única aberta para cima, era feita de plástico reforçado com fibra de vidro para tornar o acionamento mais leve. Novos pacotes eram o Royal SE e o Big Horn. O utilitário agora oferecia apenas dois motores (V8 318 com carburador de corpo duplo, 140 cv e 33,2 m.kgf e V8 360 com carburador quádruplo, 175 cv e 35,9 m.kgf) e ganhava melhorias como pneus radiais, suspensão revista para maior conforto e tanque de combustível ampliado. O Trail Duster, embora acompanhasse a remodelação, ficava no mercado por um só ano-modelo.
O modelo 1981 ganhava para-lamas mais volumosos e teto fixo com vidros maiores;
a tração 4×4 já não era permanente; nas demais fotos, poucas alterações até 1987
Sem grandes renovações de aparência, o Ramcharger evoluiu devagar. A grade dianteira mudava em 1986; dois anos depois aparecia a versão 100, mais simples que a 150 vendida até então, e o motor 318 recebia injeção eletrônica monoponto para produzir 170 cv e 35,9 m.kgf, seguido em 1989 pelo V8 360, que assim fornecia 190 cv e 35,2 m.kgf. No ano seguinte os freios das rodas traseiras ganhavam sistema antitravamento (ABS). Câmbio automático mais moderno e com quatro marchas e nova grade apareciam no modelo 1991. A injeção do 318 mudava para multiponto (para expressivos 230 cv e 38,7 m.kgf) no ano seguinte, quando o câmbio manual recebia a quinta marcha e surgia o pacote decorativo Canyon Sport.
Avaliado pela revista Field & Stream, o Ramcharger mostrou valentia, mas foi criticado pela alavanca de câmbio muito distante e o rodar menos confortável que os do Blazer e do Bronco: “Ele pode estar um pouco fora de moda, mas certamente cumpre sua função. Se o trabalho envolve rebocar algo de mais de 900 kg, porém, você deve optar pelo motor de 360 pol³ e o pacote de reboque. Em qualquer versão, o veículo oferece uma das poucas barganhas que restaram no mundo de hoje. Seus prazeres espartanos provam a validade do velho adágio ‘não arrume o que não está quebrado’”.
Para 1993 o motor Magnum V8 de 360 pol³ substituía o antigo LA de mesma cilindrada. Embora tivesse os mesmos 230 cv do 318, oferecia torque bem maior (44,9 m.kgf). O câmbio automático agora vinha de série com qualquer um deles. Contudo, o mercado para grandes utilitários de duas portas havia-se tornado uma fração do que era no passado e a Dodge optou por não mais o oferecer nos EUA após aquele ano. A fabricação era mantida até 1996 no México, onde havia começado em 1985, mas sem novos aprimoramentos.
O Ramcharger 1992 foi um dos últimos daquela geração nos EUA; à direita
o novo modelo de 1999 feito sobre as picapes Ram, vendido apenas no México
E foi lá mesmo que o Ramcharger ressurgiu em 1999, baseado nas picapes Ram de nova geração lançadas cinco anos antes. Maior — 5,03 metros de comprimento contra 4,77 m do anterior —, o novo utilitário tinha formas imponentes, com o capô mais alto que os para-lamas, e usava três janelas por lado em vez de apenas duas. Atrás do banco traseiro convencional existiam pequenos bancos laterais, que deixavam mais dois passageiros um de frente ao outro, como em algumas picapes de cabine estendida, somando oito lugares.
Os motores Magnum V8 vinham em duas versões, de 318 e 360 pol³, com quatro marchas nos câmbios manual e automático e tração só traseira. O peso superava 2,4 toneladas. A revista Car and Driver avaliou o modelo: “Esperávamos um rodar muito duro, mas ele é bastante suave. A suspensão trabalha com longo curso e inclinação pronunciada de carroceria nas curvas. O V8 de 5,2 litros é torcudo e responde bem; o câmbio atua com rapidez e reduz marchas sem hesitação. Não espere que o Ramcharger apareça nos EUA, pois ele traumatizaria as médias de consumo da Daimler Chrysler no CAFE. A companhia preferiria que você se concentrasse no Dodge Durango e no Jeep Grand Cherokee”. Essa geração durou apenas dois anos, até 2001.
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