Antes dos esportivos RX-7 e RX-8, a marca japonesa fez seu primeiro uso do Wankel em um cupê de reduzida produção
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Para alguns, carro esportivo tem de ter motor de oito cilindros. Outros se satisfazem com seis ou mesmo quatro. Mas quem se interessaria por um automóvel voltado ao desempenho com motor a combustão sem cilindro algum?
A japonesa Mazda é, por larga margem, o fabricante que por mais tempo se dedicou ao motor rotativo desenvolvido pelo alemão Felix Wankel: iniciou seu desenvolvimento em 1961 e por mais de 30 anos tem sido a única marca interessada em sua evolução, tendo produzido entre 1978 e 2002 o esportivo RX-7 e de 2003 a 2012 o RX-8 — e o conceito RX-Vision aponta que a história pode ter um novo capítulo. Para entender essa insistência é preciso conhecer os primeiros passos dessa tecnologia dentro da empresa. Tudo começou apenas um ano após produzir seu primeiro automóvel, em 1961, quando a Mazda (então chamada Toyo Kogyo) adquiria da alemã NSU os direitos de produção do inovador motor sem pistões.
Seu objetivo era estabelecer-se em termos de inovação tecnológica, reforçando a imagem da então iniciante no mercado. Consta que ela não demorou a se arrepender, ao testar o motor e constatar seus problemas. Apesar dos obstáculos, a Mazda iniciava em dezembro de 1962 o projeto de um carro esporte com motor rotativo e já no ano seguinte, em outubro, era apresentado no Salão de Tóquio um carro-conceito com sua essência: o projeto L402A.
Entre-eixos curto e traseira longa davam estranhas proporções ao Cosmo; atrás, inspiração em turbinas
Seu motor tinha dois rotores (cada um de 398 cm³), número que testes haviam considerado ideal em termos de produção de torque, mas a potência ainda era modesta, 70 cv. Como numerosos fabricantes — Alfa Romeo, Citroën, General Motors, Porsche, até Rolls-Royce — descobririam ao tentar trazê-lo ao mercado, o ponto crítico do Wankel era o rápido desgaste dos selos de vedação nas extremidades dos rotores, que fazia desgastar também as câmaras (seus “cilindros”), reduzindo a potência e elevando o consumo de combustível e as emissões poluentes.
A versão aprimorada com 128 cv permitia máxima de 200 km/h e acelerar de 0 a 100 km/h em 7,5 segundos, tempo de respeito mesmo hoje
Era um desafio, mas a Mazda seguiu adiante, tão empenhada que nada menos que 47 engenheiros foram dedicados ao projeto. Eles se tornariam conhecidos como os 47 Guerreiros do Rotativo, uma alusão aos 47 Guerreiros de Ronin, os samurais sem líder da lenda japonesa que acabaram em um suicídio em massa. Os guerreiros da Mazda, entretanto, tiveram melhor sorte: encontraram a solução na forma de rotores de alumínio fundido com reforço em cromo duro e selos impregnados de uma liga de alumínio e grafite.
Em abril de 1966 estavam prontos 80 carros de pré-série, com dois rotores de 491 cm³, e em maio de 1967 (três meses antes do lançamento do NSU Ro 80) chegava ao mercado o Cosmo Sport, um cupê de dois lugares e perfil baixo que media 4,15 metros de comprimento, 2,20 m entre eixos e apenas 1,17 m de altura e pesava 940 kg. Não era o primeiro carro com motor rotativo, título que pertence ao NSU Sport Spider de 1965, mas teve a primazia no uso de dois rotores. Suas linhas esportivas eram algo estranhas pela desproporção entre a compacta cabine com entre-eixos curto e as longas frente e traseira.
Projeto complicado: desgaste nos selos dos rotores causavam problemas prematuros ao motor
Os faróis circulares carenados, a ampla tomada de ar sob o para-choque dianteiro e as saídas de ar nos para-lamas eram comuns em carros esporte daquele tempo, enquanto a traseira tinha linhas originais, com vidro bastante envolvente e lanternas cortadas pelo para-choque, que lembravam a parte posterior de turbinas. O interior exibia certo requinte, volante esportivo Nardi com aro de madeira e regulagem em distância e um painel completo (incluindo conta-giros, manômetro de óleo e voltímetro) com estilo de inspiração aeronáutica. Havia um rádio Clarion com antena elétrica e duas buzinas, uma para baixas velocidades e outra para altas.
A mecânica sofisticada incluía freios dianteiros a disco (ainda raros ao tempo) e suspensão traseira De Dion com molas semielípticas; as dianteiras eram helicoidais em um arranjo de braços sobrepostos. Mas o destaque estava sob o capô: leve e compacto, o motor L10A de dois rotores com cilindrada total de 982 cm³ — equivalentes a 2,0 litros em um motor convencional —, carburador Zenith de quatro corpos e duas velas por rotor, solução para maior estabilidade da combustão. A potência alcançava 110 cv a 7.000 rpm, origem da denominação 110S do modelo em mercados de exportação, com torque máximo de 13,3 m.kgf a 3.500 rpm.
Recursos que hoje são comuns já estavam presentes, como jatos de óleo para refrigerar os “pistões” e radiador de óleo. Seu desempenho era bastante bom, com velocidade máxima de 185 km/h. Além disso, por prever desde o início o emprego do Wankel, o projeto comandado por Kenichi Yamamoto pôde adotar uma linha de capô bastante baixa para os padrões da época, com benefícios aerodinâmicos, e posicionar o motor atrás do eixo dianteiro, o que favorecia a distribuição de massas e a estabilidade.
O Cosmo usava freios a disco e suspensão De Dion; mercados de exportação o recebiam como 110 S
A revista Motor Trend dirigiu em 2006 um Cosmo Sport 1967, um dos poucos que chegaram aos Estados Unidos: “O pequeno carro não foi desenhado para o mercado norte-americano. É muito compacto por dentro — e não é um puro carro esporte como o Toyota 2000 GT que parece um Jaguar E-Type, o Nissan Fairlady que lembra o MG B e o Honda S800 que parece um Austin-Healey Sprite. É um grã-turismo de dois lugares charmoso com toques reminiscentes do Ford Thunderbird 1961“.
“O motor não é torcudo ou rápido nas saídas, claro, mas a potência se desenvolve como em qualquer rotativo: quanto mais rápido se vai, mais suave e disposto ele fica. Em uma estrada de montanha, você precisará com frequência reduzir de terceira para segunda: o momento é seu amigo neste carro. Apesar do pico a 7.000 rpm, a potência parece cair após 6.000. O câmbio muda de marcha com a facilidade de um Miata [o bem-sucedido roadster da marca, em produção desde 1989] e o comportamento dinâmico é bom”, acrescentou a revista.
Uma versão aprimorada do Cosmo, a L10B, era apresentada em julho de 1968. Com distância entre eixos ampliada em expressivos 38 centímetros, mas comprimento quase igual, as proporções da carroceria ficavam bem mais agradáveis aos olhos. A potência crescia para 128 cv e o torque para 14,2 m.kgf, o que permitia máxima de 200 km/h. Apesar do peso aumentado para 990 kg, acelerava de 0 a 100 km/h em cerca de 7,5 segundos, tempo de respeito mesmo hoje.
Interior esportivo: volante Nardi de madeira, fartura de instrumentos, rádio com antena elétrica
Trazia ainda evoluções em conforto (ar-condicionado opcional), em segurança (cintos de três pontos e encostos de cabeça em unidades posteriores) e técnicas, como câmbio de cinco marchas em vez de quatro, freios assistidos e rodas de 15 pol, ante 14. A tomada de ar sob o para-choque dianteiro estava bem maior. No mês seguinte o novo Cosmo obtinha o quarto lugar na Marathon de la Route, prova de 84 horas de duração no Nordschleife, o anel norte do famoso autódromo alemão de Nürburgring, comprovando a robustez do motor rotativo.
A mesma Motor Trend avaliou em 1969 um modelo da segunda série, no qual destacou “a marcha-lenta baixa e suave e a facilidade de acelerar junto de carros esporte conhecidos como MG, Triumph e Morgan. Controle, estabilidade e características de rodagem podem ser julgadas acima da média dos carros japoneses e bem adequados aos padrões dos EUA”. A revista voltaria em 2010 a dirigir um Cosmo Sport daquela fase: “A 3.000 rpm ele decola. Se há algo em que aqueles engenheiros acertaram 45 anos atrás, é o som de escapamento, brilhante, profundo e viciante. Dirigi-lo é fácil, pois o pacote de suspensão foi bem feito. O cupê é estável, quase sem sinal de inclinação ou subesterço“.
Caro e com mercado limitado, o Cosmo Sport teve produzidas apenas 1.519 unidades (1.176 da segunda versão) até setembro de 1972. De 1968 em diante a Mazda aplicou o Wankel a outros modelos, em geral mais pacatos e familiares, como o Familia Rotary Coupe naquele ano, o Luce Rotary Coupe em 1969, o Capella Rotary em 1970, o Savanna Rotary em 1971, o Luce AP em 1973 e o Roadpacer em 1975, até que em 1978 a esportividade voltasse com toda a força no cupê RX-7.
Entre-eixos alongado, entrada de ar maior, motor com 128 cv: o Cosmo Sport era revisto em 1968
O nome Cosmo não foi esquecido pela marca: retornava em 1975 no cupê Cosmo AP (RX-5 em mercados de exportação), que oferecia tanto o Wankel de dois rotores quanto motores convencionais de 1,8 e 2,0 litros. Um novo modelo vinha em 1981, com duas ou quatro portas e mais alternativas de motores — 1,8, 2,0 e 2,2-litros, mais os rotativos de 1,1 e 1,3 litro. De 1990 a 1996 a Mazda fez o Eunos Cosmo (Eunos era uma divisão de luxo da marca), cupê com opção entre dois rotores, 1,3 litro e 230 cv e um inédito motor de três rotores, 2,0 litros e 280 cv.
Na 24 Horas de Le Mans de 1991, o Mazda 787B com quatro rotores era o primeiro carro japonês a vencer a lendária prova francesa — o Wankel havia alcançado o apogeu, mesmo que apenas um fabricante tivesse perseverado. Para relembrar o precursor, a fábrica criou para o Salão de Tóquio de 2002 o carro-conceito Cosmo 21, com grande semelhança de estilo com o original, mas desenvolvido sobre a plataforma do MX-5 Miata com o motor Renesis de nova geração do RX-8.
Mais Carros do Passado |