Há 70 anos começava a nascer um veículo funcional como poucos, que seria fabricado por 56 anos no Brasil
Texto: Francis Castaings e Fabrício Samahá* – Fotos: divulgação
O projeto do utilitário mais famoso do mundo começou a ser esboçado em Wolfsburg, na Alemanha, logo após a Segunda Guerra Mundial. Na época a fábrica da Volkswagen ainda não estava toda refeita dos danos do conflito e dos bombardeios, embora já produzisse o Sedã (Fusca). Nasceu da simpatia de um oficial inglês das forças de ocupação (Major Ivan Hirst, encarregado da produção), de um engenheiro alemão (Alfred Haesner) e, sobretudo, de um holandês (Ben Pon), dono de concessionária, a ideia de um automóvel revolucionário e muito eficaz.
Pon, que seria o primeiro importador oficial Volkswagen em agosto de 1947 — a Pon’s Automobielhandel N.V., em Amersfoort, nos Países Baixos —, fez os rabiscos que dariam origem a um sucesso. A ideia surgiu quando ele viu na fábrica os veículos construídos sobre chassi tubular com a mecânica do Sedã. Chamados de Plattenwagen (carro plano), eram simples plataformas com pequena cabine para duas pessoas na parte de trás, usadas no transporte interno de peças. A VW do Brasil teria alguns para a mesma finalidade.
O esboço na agenda de Ben Pon, 70 anos atrás, definiu como seria o utilitário da VW; no centro, o Plattenwagen; à direita, protótipo do Tipo 29
De início Pon pensou em importar o Plattenwagen, mas o departamento de trânsito holandês lhe negou licença para uso em vias públicas. Foi então que o concessionário fez os primeiros traços da Kombi, um furgão de carga, em sua agenda de bolso. A disposição e as medidas básicas estavam ali. O Major Hirst gostou da ideia e mandou a equipe de projetos se mexer. Era o dia 23 de abril de 1947, considerado o dia da concepção da Kombi.
O nome Kombi, que a consagrou aqui, é uma forma abreviada de termos alemães que significam veículo combinado ou combinação do espaço para carga e passageiros
O engenheiro Haesner assumiu o comando do projeto EA 7 (sigla para Entwicklungsauftrag, instrução de desenvolvimento em alemão). Os primeiros protótipos rodavam no ano seguinte, com a Volkswagenwerke novamente sob comando alemão — o de Heinrich “Heinz” Nordhoff, que permaneceria no cargo até sua morte, em 1968. O furgão tinha de suportar a carga de 800 kg com o modesto motor de quatro cilindros contrapostos (boxer) arrefecido a ar, 1,1 litro, potência de 25 cv e torque de 6,8 m.kgf. Chegava a 80 km/h.
Ben Pon sugeriu posicionar o motor atrás, a carga entre os eixos e dois ocupantes à frente. Assim se obteria um bom equilíbrio, pensou. A ideia original era aproveitar o chassi-plataforma de estrutura central do Sedã (e do jipe Kubelwagen), para simplificar a produção e reduzir custos. Mas problemas de resistência logo apareceram, o que levou a VW a desenvolver um novo chassi que suportasse o peso previsto. Resolveu-se partir para estrutura monobloco, solução mais moderna.
O modelo 1950 era um furgão ainda sem nome, para-choque ou vidros na traseira, mas já com ampla capacidade de carga: 4,8 metros cúbicos
É importante saber que o Fusca poderia ter sido monobloco desde o começo, mas o astuto Professor Ferdinand Porsche, seu criador, anteviu um derivado para uso militar e decidiu pela construção separada. O chassi do Sedã serviu para fabricar o Kubelwagen assim que o conflito bélico começou. Não fosse por essa decisão, uma infinidade de bugues e veículos especiais com plataforma VW — aqui e no resto do mundo — teria dificuldade bem maior de ser produzida.
Da frente chata à arredondada
Os primeiros protótipos, chamados Tipo 29, tinham a frente retilínea. Era uma solução simples em termos construtivos, mas que se revelaria ineficaz em termos de aerodinâmica: testes de túnel de vento da Universidade de Braunschweig com um modelo em escala apontaram Cx altíssimo, 0,75. Ben Pon propôs então formas curvas, arredondadas, que reduziram a resistência ao ar — o Cx 0,44 ficou melhor que o do Fusca, 0,48.
O utilitário era apresentado à imprensa em outubro de 1949 ainda sem nome: a marca referia-se a ele apenas como Tipo 2, sendo o Tipo 1 o Sedã. Nordhoff destacava: “Apenas este carro tem seu compartimento de carga exatamente entre os eixos. A distribuição de peso sobre os eixos é sempre a mesma, não importa se o veículo está carregado ou não”.
Motorista na frente, motor na traseira e muito espaço entre eles, com mesma distribuição de peso com ou sem carga; no começo o estepe vinha junto ao motor
Em 8 de março de 1950 a primeira fornada deixava a linha de produção da fábrica de Wolfsburg, batizada como Transporter ― nome que, porém, só seria estampado na carroceria em 1990. De início eram 10 carros por dia, mas ao fim daquele ano a produção chegaria a 8 mil unidades.
Havia as versões Kastenwagen (furgão), Kleinbus ou Microbus (de passageiros, com bancos fixos) e Kombi (com bancos removíveis para transporte de carga ou passageiros). O termo Kombi veio de Kombinationsfahrzeug ou Kombinationskraftwagen, termos que em alemão significam veículo combinado ou combinação do espaço para carga e passageiros — o segundo designa, genericamente, as peruas. Com o tempo ela receberia apelidos os mais diversos de acordo com o país (leia quadro abaixo).
A frente usava faróis ovais — os mesmos do Sedã, mas em montagem horizontal —, um grande escudo VW e para-brisa bipartido com vidros planos. Na traseira não havia vidro, o que dificultava manobras, nem para-choque e as lanternas eram pequenas. Na coluna das portas dianteiras ficavam as “bananinhas” para sinalizar mudança de direção. Nos modelos iniciais a grande tampa traseira dava acesso ao motor e ao estepe junto dele (logo mudaria para acima do motor), mas não ao compartimento de carga. Essa versão ficaria conhecida como Barn-door ou porta de celeiro.
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Os apelidos
Assim como para o Fusca, apelidos fazem parte do anedotário do modelo. Pela posição de dirigir tão à frente, ficou famosa a frase de que “o para-choque da Kombi é o peito do motorista”. A má estabilidade tornou célebre o apelido de “Jesus está chamando”, enquanto a forma peculiar da carroceria justifica o vulgo “pão de fôrma”, também em Portugal.
Apelidos relacionados ao formato eram Breadloaf (pão) nos EUA e Inglaterra, Rugbrød (pão de centeio) na Dinamarca, Jeunakeula (frente de trem) e Klaippari (forma reduzida de miniônibus) na Finlândia, Ponorka (submarino) na República Checa e Papuga (papagaio) e Ogorek (pepino) na Polônia.
Na Austrália, como aqui, o nome de uma das versões (Kombi) padronizou-se para toda a linha. Nos EUA era chamada simplesmente de Truck (caminhão), para furgão ou picape, e Bus (ônibus) ou Station Wagon (perua), para o modelo de passageiros. Na França havia para a T1 as versões Camionnette (furgão), Combi (mista) e Huit-Places (perua de oito lugares), além da Pickup.
Para os alemães, no entanto, ela era a Bulli. O nome não tem significado claro nem mesmo no país, segundo Alexander Gromow, especialista na história da marca. Ele recorda: “Na década de 1950 havia a cerveja alemã Bulli-Bock, referência à raça de cachorros bulldog, cujo diminutivo é bulli”. Talvez a explicação do apelido fosse certa similaridade entre a frente da Kombi e o focinho achatado do cão.
Gromow acrescenta que “a Volkswagen pretendia adotar o nome como oficial, por ser um apelido consagrado, mas os direitos pertenciam a outro fabricante que não quis fazer acordo: desde os anos 30, Bulli era o apelido dos tratores da empresa Lanz-Bulldog”.
Outro apelido curioso era “frango branco”, no Egito: além da cor mais comum da Kombi no país, fazia alusão ao hábito de circular com a tampa do motor aberta para melhor arrefecimento do motor, o que de alguma forma lembrava um frango assado.
Se muitos chamam a T1 em inglês de Splitty (ou Osztott Ablakos, no caso dos húngaros) pelo para-brisa bipartido, a T2 ficou conhecida como Bay Window pelo amplo vidro frontal. A VW tencionava usar o nome Clipper, que chegou a sair em materiais de divulgação, mas estava registrado pela companhia aérea Pan Am para aviões. Mesmo assim, o termo pegou.
Os holandeses, de alguma forma “pais” da Kombi, também distinguem as gerações pelos apelidos: Spijlbus (ônibus dividido) para a T1, Pano (abreviação de Panorama Bus ou ônibus panorâmico) para a T2 e Aardappelkist (caixa de batatas) para a T3, com seu estilo retilíneo.
*Bob Sharp colaborou com o artigo de 2001 que deu origem a este
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