Com mecânica de automóvel e desenho peculiar, o prático
utilitário serviu de base para uma infinidade de versões e aplicações
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Os brasileiros acabam de ver encerrar-se a longeva carreira de seu mais popular veículo comercial de carga e passageiros, a Volkswagen Kombi, produzida de forma ininterrupta no País entre 1957 e 2013. Para os franceses, o papel da Kombi foi exercido durante 34 anos por um modelo que antecedeu a própria versão alemã do modelo VW: o furgão Citroën H.
Alguns o chamavam de Nez de Cochon (nariz de porco) por sua frente volumosa e protuberante; outros, de Panier à Salade (cesta de salada) pelas formas angulosas da parte dianteira, que lembrariam tal recipiente. O nome oficial, porém, era simplesmente H — a oitava letra do alfabeto, por ter sido aprovado o oitavo projeto desenvolvido pela empresa —, podendo ser associado a outra letra para formar as designações HX, HZ e HW (em ordem crescente de capacidade de carga), além da mais popular HY. Versões iniciais, contudo, eram apenas H.
A chapa corrugada do H obtinha resistência com pouca espessura; a Citroën
fazia o furgão, a picape e um chassi apto a receber diversas carrocerias
Em uma Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial, um utilitário simples e barato era uma necessidade — objetivo que a Citroën atingiu ao usar o máximo de componentes comuns a seus automóveis. Motor e câmbio do H eram similares aos do Traction Avant (mais tarde usados pelo DS), embora com o motor à frente da caixa para que a cabine pudesse ficar avançada, com os ocupantes sobre o eixo dianteiro. Havia outras peças de carros como os faróis, cedidos pelo 2CV, e velocímetro, retrovisores e limpadores de para-brisa do Traction. O projeto foi iniciado em sigilo em plena guerra, em 1943, quando os fabricantes estavam impedidos de trabalhar em veículos particulares. O modelo final era apresentado em junho de 1947.
A gama de aplicações era praticamente
ilimitada: micro-ônibus, carro de bombeiros,
ambulância, lanchonete e até guindaste
Sucessor de utilitários produzidos em pequena quantidade — o TUB e o TUC —, o H tinha um “focinho” de linhas retas para abrigar o motor. À frente, barras formavam o duplo chevron antes da adoção do emblema habitual. Chamavam atenção as chapas corrugadas de grande parte da carroceria, solução que as deixava mais rígidas sem exigir muita espessura — boa medida tanto pela economia quanto pela redução de peso — e permitia o uso de prensas bastante simples. A ideia vinha da aeronáutica, aplicada aos aviões alemães Junkers construídos da Primeira Guerra Mundial até os anos 30.
Assim como a Kombi, mas ao contrário de muitos utilitários do gênero que seriam feitos em outros países, o H usava estrutura monobloco (que a Citroën conhecia bem, tendo usado já nos anos 30 no Traction Avant) em vez de carroceria montada sobre chassi. Um subchassi dianteiro apoiava motor, câmbio, suspensão e direção. A fábrica fazia o utilitário em três versões: fourgon ou furgão de carga com porta lateral corrediça, plateau ou picape (lançada em 1953) e uma plataforma simples para receber a carroceria em empresas especializadas.
A ambulância da Currus era uma das aplicações; por 17 anos o para-brisa
vinha bipartido; o H foi produzido na França, Bélgica e Países Baixos
A gama de aplicações, assim, era praticamente ilimitada. Firmas o transformavam em micro-ônibus, carro de bombeiros, ambulância, frigorífico, carro fúnebre, lanchonete móvel, veículo para acampamento, para transporte escolar, de animais, para traslado de turistas entre hotel e aeroporto, picape de cabine dupla para uso misto passageiros/carga e até guindaste — tudo bem apresentado pela fábrica em seu material promocional. A francesa Heuliez, conhecida por projetos especiais, fez uma cabine avançada sem a frente saliente e com desenho interessante.
O comprimento-padrão era de 4,26 metros, mas passava a 5,24 m em uma variação alongada para fins específicos. Como curiosidade, a distância entre eixos era pouco maior no lado esquerdo (2,53 m) que no direito (2,50 m) por causa do arranjo de montagem das barras de torção da suspensão. No caso da picape, a cabine podia vir aberta ou fechada na parte traseira e havia duas tampas de caçamba articuladas nas laterais. Como o motor e a tração eram dianteiros, a Citroën obteve um piso de carga plano e extremamente baixo, à altura do centro das rodas.
Nos 17 primeiros anos o H usava para-brisa bipartido, depois substituído por um inteiriço; a janela traseira foi ampliada na mesma linha 1964. Seis anos depois, no modelo 1970, os arcos dos para-lamas de trás mudavam do formato semicircular para retangular. As portas sempre foram “suicidas”, articuladas na parte traseira, com janelas apenas de correr — a exceção foi o modelo vendido nos Países Baixos de 1968 em diante, que usava articulação na frente. O estepe vinha atrás de uma tampa na lateral esquerda; do lado oposto estava o tanque de combustível. O interior, como se espera, era de uma simplicidade franciscana e trazia volante quase horizontal.
Do transporte de turistas ao de animais, de lanchonete móvel a casa ambulante,
de carro de bombeiros a guindaste, praticamente tudo foi feito com o H
O motor inicial do utilitário era o quatro-cilindros de 1.911 cm³ do Traction 11 CV, com comando no bloco e válvulas no cabeçote, que desenvolvia potência de 50 cv. Era o mínimo que se podia aceitar para o veículo carregado: com 1.400 a 1.450 kg de peso, ele tinha capacidade de carga de 1.200 kg na versão inicial H. O câmbio manual de três marchas (cedido pela versão 15 CV do Traction) vinha com a primeira não sincronizada, a suspensão usava dois amortecedores para cada roda dianteira e os freios eram a tambor.
A versão HZ aparecia em 1949 com menor capacidade de carga, 850 kg, e alterações que permitiam maior velocidade máxima — 88 km/h em vez dos 78 da primeira. A H dava lugar em 1958 à HY, capaz de transportar 1.500 kg, e três anos mais tarde surgia a opção de motor Perkins a diesel de 1.621 cm³ e 42 cv; o sistema elétrico evoluía ao mesmo tempo de seis para 12 volts. Uma opção a gasolina de menor cilindrada (com 1.628 cm³ e 45 cv) vinha em 1963, sendo identificada como HY-72 e HZ-72. A substituição do motor Perkins por um Indénor de 1.816 cm³ e 50 cv, no ano seguinte, levava às designações HY-IN e HZ-IN.
Não demorou para haver novos aumentos de potência. Em 1966, as versões HY-78 e HZ-78 traziam 58 cv no motor 1,9 a gasolina, enquanto o Indénor a diesel crescia para 1.946 cm³ e 57 cv, justificando aumentar a capacidade dos utilitários básicos para 1.000 kg. Um furgão mais compacto era lançado para uso em Paris, que fazia restrições de estacionamento a veículos maiores. As versões mais robustas, no entanto, eram o HX-IN2 e o HW-IN2 de 1969, que levavam até 1.600 kg. Três anos depois era lançado o HW com suspensão hidropneumática na traseira e carroceria de ambulância — combinação ideal, pois o rodar suave permitia melhor atendimento ao paciente e transporte mais seguro.
A Heuliez fez uma versão de cabine avançada (esquerda); com a suspensão
hidropneumática o H ganhava adequação ainda maior ao uso como ambulância
Embora não tenhamos encontrado um teste do Citroën H, as impressões do site H Van Registrar dão uma ideia de como era dirigi-lo: “Você sobe em um banco mais alto que o de qualquer outro furgão. A visibilidade é maravilhosa! Isso tem a vantagem de mostrar quando os carros à frente estão freando e permitir que você comece a parar antes, pois mesmo os freios em bom estado são apenas adequados. O motor liga fácil ao apertar o botão vermelho e gira suave em marcha-lenta. Primeira e segunda marchas acabam logo, usando a longa alavanca, e o motor empurra bem em baixa rotação. A direção é leve e precisa em movimento e o comportamento é muito bom. A velocidade máxima é de cerca de 100 km/h, mas a de cruzeiro fica entre 75 e 95 km/h”.
Depois de 34 anos de produção nas fábricas francesa e belga, que acumularam 478 mil unidades (outras 10 mil foram feitas nos Países Baixos), o H deixava o mercado em dezembro de 1981 para abrir caminho a furgões mais modernos, o C25 e o C35, projetados em uma parceria com a Fiat que dura até hoje (o C25 era baseado no Ducato de primeira geração). A última unidade foi pintada em cinza — mesma cor da primeira, construída em tempo de escassez de matéria-prima, quando se usavam restos de tinta industrial.
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