Ghia, um estúdio de belos traços e conceitos inusitados

Ghia - Ghia Chrysler D Elegance 1953

 

Fundada há 100 anos, a empresa de Turim deu formas a marcas e
ideias muito variadas antes de se tornar propriedade da Ford

Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação

 

Muitos a conhecem como a designação de versões luxuosas da Ford, do Escort e do Del Rey dos anos 80 ao recente Focus. Outros a lembrarão como parte do nome Karmann Ghia, empresa envolvida na construção do esportivo homônimo da Volkswagen, tanto na Europa quanto no Brasil. No entanto, a história da Ghia vai muito além de seu envolvimento com esses grandes fabricantes.

A Carrozzeria Ghia & Gariglio foi fundada em 1915 em Turim, na Itália, pelos sócios Giacinto Ghia e Gariglio. Nascido na cidade em 1887, Ghia começou atividades construindo carrocerias leves de alumínio para carros esportivos como o Alfa Romeo 6C 1500 que venceu a prova Mille Miglia de 1929, modelos da Fiat (como o 508 Balilla de 1933 e o 1500 Cabriolet de 1935) e da Lancia, caso do elegante Aprilia Cabriolet de 1937.

Então veio a Segunda Guerra Mundial e um bombardeio destruiu a sede. Giacinto, enquanto acompanhava sua reconstrução, adoeceu e veio a falecer em 1944. A empresa foi vendida a dois de seus amigos, Felice Mario Boano e Giorgio Alberti, que definiram um novo local como sede, próximo a uma linha férrea, para facilitar o transporte de carrocerias. O estilo de Boano teve como elemento típico as rodas encobertas.

 

Fiat 508S Balilla Spider 1933
Fiat 1500 Cabriolet 1935

 

Alfa 6C Supergioiello 1950
Delahaye 235M 1950
Fiat 8V Supersonic 1953
 
Dos Fiats do pré-guerra aos elegantes modelos dos anos 50, a Ghia
“vestiu” sedãs e esportivos com carrocerias especiais

 

Dali em diante a Ghia elaborou modelos como Delahaye 135M Ghia (1948) e 235M, Alfa Romeo 6C 2500 SS Supergioiello, Ferrari 195 Inter Coupe (1950), Ferrari 340 America Coupe, Talbot-Lago T-26 (1951), Alfa Giulietta Sprint, Ferrari 212 Inter Coupe e Jaguar XK 120 Supersonic (1952), Abarth Fiat 1100, Alfa 1900 Sprint Supergioiello e Fiat 8V Supersonic (1953). O estilo Supersonic era obra de Giovanni Savonuzzi, que antes trabalhara na Cisitalia. Uma subsidiária na cidade de Aigle, na Suíça — a Ghia-Aigle —, era estabelecida em 1948 e desenhava projetos com base em Chevrolet, Citroën, Fiat, Jaguar e Mercedes-Benz.

 

Quando chegava à produção do automóvel,
o objetivo da Ghia era o de pequenos
volumes, como no caso do Lancia Aurelia B20

 

Relações com o lado oposto do Atlântico — a Chrysler dos Estados Unidos — também foram firmadas na gestão de Boano, que para auxiliar nos trabalhos contratou Luigi Segre, um jovem projetista e diretor comercial da Siata. Agora engenheiro chefe e projetista da Ghia, Segre tornou-se amigo de C. B. Thomas, vice-presidente da Chrysler e responsável pelas exportações, mas Boano não concordava com esse rumo.

As divergências entre eles levaram Boano a deixar o comando da Ghia em 1953 para trabalhar na Fiat, vendendo sua parte a Segre no ano seguinte. No período de trabalhos para a Chrysler em parceria com Virgil Exner, projetista da marca norte-americana, a empresa desenhou 18 conceitos Chrysler Ghia entre 1951 e 1953, entre os quais K-310, C-200, SS (Styling Special), D’Elegance, SS Thomas Special e Dodge Firearrow I e II, além das limusines Crown Imperial de produção.

 

Dodge Firearrow 1954, Chrysler Falcon 1954, Chrysler Diablo 1957
Volkswagen Karmann-Ghia 1955

 

Chrysler D’Elegance 1953
Alfa 1900 CS Speciale 1954
Lincoln Futura 1955
 
No período de Segre a Ghia desenhou o VW Karmann Ghia, numerosos
conceitos para a Chrysler e um Lincoln que se tornaria o Batmóvel

 

Sob o comando de Segre a Ghia prosperou e obteve contratos de desenho para outras grandes marcas, como a Ford com o conceito Lincoln Futura (que seria transformado por George Barris no primeiro Batmóvel em 1966), a Volkswagen com o Karmann Ghia (a carroceria era construída pela alemã Karmann; por isso o nome), a Renault com o Frégate e o Dauphine (1956) e a Volvo com protótipos do esportivo P1800. Projetos com base em Aston Martin, Jaguar, Mercury, Packard e Simca também foram elaborados na época.

A Dual-Ghia, associação com o empresário Eugene Casaroll, que havia fundado a Dual Motors em Detroit, começava a operar nos EUA em 1956. Interessado em desenhos Ghia para a Chrysler, Casaroll firmou um acordo para enviar chassis Dodge modificados a Turim, onde a empresa aplicava carrocerias, e trazê-los de volta para receber motores Chrysler Hemi V8. Até 1958 foram feitos 117 automóveis nesse processo, a maioria conversíveis, vendidos a preços exorbitantes — bem acima de um Cadillac Eldorado Biarritz.

A parceria com a Chrysler prosseguiu com conceitos como DeSoto Adventurer I e II, Chrysler Flight Sweep I e II, Dart, Norseman, Special K300, Diablo, Turboflite e Plymouth XNR. Quando chegava à produção do automóvel, o objetivo da Ghia era sempre o de pequenos volumes, como exemplifica o caso do Lancia Aurelia B20 Coupé: depois de construir 98 carrocerias, ela abriu mão do trabalho e o transferiu à Pinin Farina (o nome passaria a Pininfarina só em 1961), que lidava com séries maiores.

 

Ferrari 410 Superamerica 1956
Dual-Ghia L6/4 Coupe 1960

 

Selene I 1956
Renault Floride 1959
O estranho Selene, o Floride, o 450 SS e um ousado Ferrari são dos anos 50;
modelos Dual-Ghia derivaram de associação com norte-americanos

 

O talento de Pietro Frua era adquirido em 1957 pela Ghia, que o contratou como chefe de estilo. Tom Tjaarda, um norte-americano de origem holandesa, ingressava na empresa em 1959 para elaborar projetos como o Selene I (do mesmo ano), o Innocenti 950 S Ghia Spider e a parte traseira do VW Karmann Ghia de segunda geração, o Tipo 34 (ambos em 1960).

 

 

Com a morte de Segres, em 1963, a parceria com a Chrysler era encerrada — Exner já não trabalhava na marca de Detroit havia dois anos. O Turbine Car, que testava a aplicação de turbinas a gás a automóveis, foi o último modelo da empresa com desenho do estúdio, mas ainda seria produzida uma série de 50 unidades do Ghia 450 SS, de 1966, um cupê com chassi tubular e motor Chrysler V8 de 4,5 litros e 235 cv. Em 1965 um jovem italiano assumia o comando do estilo: Giorgetto Giugiaro, que em 1968 abriria o próprio negócio, a Studi Italiani Realizzazione Prototipi — e mais tarde a Italdesign, ainda em atividade.

Aquela foi uma década conturbada para a Ghia. Com a morte de Segre, Gino Rovere assumia a gerência geral, mas falecia já em 1964, sendo então substituído por Giacomo Gaspardo, ex-secretário de Segre. A empresa passava em 1966 às mãos de Ramfis Trujillo e no ano seguinte à Rowan Controller Co., de Westminster, Maryland, EUA, que indicou Alejandro de Tomaso como presidente do conselho.

 

Ghia 450 SS 1966
Chrysler TurboFlite 1961

 

De Tomaso Zonda 1971
De Tomaso Montella 1973
Maserati Ghibli 1967
 
O Ghia 450 SS usou motor Chrysler após o fim da parceria com a marca;
nos anos 60 e 70 seriam feitos o Maserati Ghibli e vários De Tomasos

 

Para a De Tomaso a Ghia desenhou os carros esporte Mangusta (1966) e Pantera (produzido pela Ford de 1970 em diante), os luxuosos Deauville (1971) e Longchamp (1972), os conceitos Zonda (1971) e Montella (1973) e até um carro de Fórmula 1 para a equipe Williams com motor Ford Cosworth. O Mangusta tinha chassi e carroceria feitos na própria Ghia, para então receber o trem de força na De Tomaso, em Modena. Trabalhos com outras marcas no período incluíram Fiat 1500 GT e Renault R8 Coupé em 1964, Duesenberg Model D, Fiat 850 Vanessa e Maserati Ghibli em 1966, Iso Rivolta Fidia e Oldsmobile Thor (com base no Toronado) em 1967 e Maserati Simun (1968). O Ghibli também tinha as carrocerias produzidas pela empresa.

Tjaarda, que havia passado a trabalhar na Pininfarina em 1961, retornava à Ghia em 1967 para substituir Giugiaro. Ele atuou em modelos como o conceito Serenissima (do mesmo ano), o Isuzu Bellett GT e o Lancia Fulvia 1600 HF Competizione (1969). Mas a gestão de De Tomaso foi turbulenta — o argentino era considerado muito difícil de lidar, o que levou vários dos projetistas a deixar a empresa no período. Sem conseguir tornar as operações lucrativas, a Rowan vendia 80% das ações em 1970 à Ford, que manteve De Tomaso no comando. Os 20% restantes seriam comprados do próprio argentino em 1972.

 

Ford Mustang II 1974
Ford GT70 1971

 

Ford Megastar 1977
Ford Corrida 1976
Ford Probe I 1979
 
Sob o guarda-chuva da Ford, nos anos 70, a Ghia deu formas a conceitos
os mais diversos (alguns bem estranhos), ao Mustang II e ao Fiesta

 

Começava ali um longo período de projetos para a marca do oval azul. Poucos foram para produção, como o Mustang II de 1974, o primeiro Fiesta de 1976 e o Topaz, lançado nos EUA em 1982, mas o estúdio notabilizou-se pela capacidade de transformar esboços em modelos de estilo, e estes em protótipos funcionais, com grande agilidade. Quando o presidente da Ford Lee Iacocca gostou de propostas de estilo da Ghia, bastaram dois meses para que ele pudesse dirigir protótipos construídos em Turim para o que se tornaria o Mustang II.

Houve também numerosos conceitos com e sem a marca Ford: nos anos 70, City Car (1970), GT-70 (1971), Mustela II (1973), Coins (1974), Urban Car (1975), Corrida e Prima (1976), Megastar (1977), Fiesta Tuareg, Lucano, Megastar II, Microsport e Mercury XM (1978), Navarre e Probe I (1979). Da década seguinte foram Granada Altair, Mustang RSX e Pockar (1980), Avant Garde, Cockpit, Shuttler e Super Gnat (1981), Brezza, Mini Max e Quicksilver (1982), Barchetta e Trio (1983), Vignale Mustang e Vignale TSX-4 (1984), Probe V e Urby (1985), Vignale TSX-6 (1986), HFX Aerostar e Lincoln by Vignale (1987), Saguaro e Via (1989).

 

Ford Barchetta 1983
Ford Forty-Nine 2001

 

Ford Pockar 1980
Lincoln Quicksilver 1983
Ford Focus 1992

 

Ford Zig e Zag 1990
Ford Turing Ka 1998
Ford Saetta 1996
 
Dos anos 80 até seu fechamento, em 2001, a Ghia criou numerosos
estudos com base Ford, um deles (o Streetka) colocado em linha

 

Nos anos 90 a série prosseguiu com Fiesta Bebop, Zag e Zig (1990), Connecta e Focus (1992), Aston Martin Lagonda Vignale (1993), Arioso (1994), Alpe, Lynx, Saetta e Vivace (1996) e Turing Ka (1998). O conversível Streetka (2000) e o Forty Nine (2001) foram seus últimos trabalhos, pois as atividades encerravam-se em 2001 — o Streetka acabou entrando em produção pela Pininfarina. Em seus últimos 18 anos, desde 1973, a Ghia esteve sob o comando de Filippo Sapino.

De 1973 em diante, a Ford aplicou o nome Ghia — com direito a um elegante brasão — a versões luxuosas em mercados europeus (Capri, Cortina, Granada, Escort, Fiesta, Focus, Mondeo, Orion, Scorpio, Sierra), norte-americano (Capri, Granada, Mustang), brasileiro (Del Rey, Escort, Focus, Mondeo) e australiano (Fairlane, Fairmont, Taurus, Territory). O emprego mais longevo foi no Fiesta, que o manteve no mercado inglês entre 1977 e 2008. Com sua substituição gradual pelo nome Titanium, o uso do logotipo Ghia foi encerrado em 2010.

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