Nascido nos anos 90 com receita de jipe, ele adequou-se à tendência de utilitários com rodar de automóvel
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
O britânico Charles Darwin definiu que na natureza não são as espécies mais fortes que sobrevivem, mas aquelas com maior capacidade de adaptação. Parece que isso se aplica também a utilitários esporte: até a década de 1990 era frequente a construção de carroceria sobre chassi com suspensão traseira por eixo rígido (quando não a dianteira) e tração integral temporária, conjunto que resultava em comportamento dinâmico mais para picape que para automóvel. Para a grande maioria dos modelos, tudo isso ficou no passado.
Entre os compactos, bom exemplo dessa evolução é o sul-coreano Kia Sportage. Sua primeira geração, lançada em julho de 1993, tinha carroceria sobre chassi derivado do furgão Bongo, tração traseira com opção por integral temporária (de uso restrito a pisos de baixa aderência) e eixo posterior rígido. As versões de duas portas, com capota retrátil na seção traseira, e de cinco portas com teto fixo tinham formas simples e arredondadas, amplos vidros e estepe preso à traseira. Como no cinco-portas a tampa abria-se para cima, era preciso rebater o suporte do pneu para a operação. Com interior espartano, media 4,13 metros de comprimento e 2,65 m de distância entre eixos.
Motores e transmissões originavam-se da Mazda japonesa, que fornecia tecnologia à Kia — mesmo processo da Hyundai com a Mitsubishi. Havia unidades de 2,0 litros a gasolina com comando de válvulas único (potência de 99 cv e torque de 17 m.kgf) e duplo (139 cv/18,5 m.kgf) e de 2,2 litros a diesel (70 cv/14,5 m.kgf). Caixas manual de cinco marchas e automática de quatro estavam disponíveis; os freios traziam sistema antitravamento (ABS) apenas na traseira.
O modelo inicial usava chassi de furgão, estepe externo, eixo rígido traseiro e tração 4×4 temporária; embaixo à direita, a versão SE da Karmann
O Sportage teve a princípio poucos concorrentes, como o Suzuki Vitara/Sidekick e sua versão para a General Motors, o Geo Tracker. Na avaliação da revista Motor Trend o cinco-portas de 99 cv mostrou “confortável rodar típico de automóvel, boa resposta de direção e sensação de estabilidade. Os bancos são firmes e confortáveis e há bom espaço para pernas e cabeças à frente e atrás. O motor é o ponto fraco, com pouca potência para ultrapassagens e mais ruídos e vibrações do que o adequado. A versão DOHC deve ser um motivador muito melhor”.
O primeiro Sportage teve vida longa, mas a concorrência mostrou que plataforma de automóvel trazia vantagens em estabilidade, conforto e eficiência
O Sportage Grand, chamado de Grand Wagon em alguns mercados, vinha em 1996 alongado em 30 centímetros na traseira sem alterar o entre-eixos. Ganhava muito espaço para bagagem (até 2.220 litros com banco traseiro rebatido) e trazia o estepe por dentro sob o assoalho. Primazia nesse ano era a bolsa inflável para os joelhos do motorista, que complementava a principal — medida voltada aos Estados Unidos, onde muitos não usavam cinto. A Karmann, que o montava na Alemanha, ofereceu a versão Special Edition com proteção frontal, estribos, rodas largas e outros acessórios fora de estrada. O 2,2 dava lugar a um 2,0-litros turbodiesel (91 cv/20,5 m.kgf). Retoques estéticos ocorriam em 1998.
De vida longa, o primeiro Sportage estava bastante superado ao sair de produção em 2002. Modelos como Honda CR-V, Subaru Forester e Toyota RAV4 haviam mostrado que plataforma de automóvel, construção monobloco e suspensão traseira independente traziam vantagens importantes em estabilidade, conforto e eficiência — talvez com alguma perda em capacidade fora de estrada, mas em patamar aceitável para a maioria dos compradores.
O primeiro Sportage mudou pouco em nove anos, mas ganhou a versão alongada Grand (em cima); o duas-portas (embaixo à esquerda) tinha capota removível
A defasagem ficava clara no comparativo da Car and Driver com Ford Escape, Hyundai Santa Fe, Suzuki Grand Vitara, Forester e RAV4, entre outros: “Todo equipado, o Kia ainda tem o ‘melhor preço’. O banco traseiro surpreende pelo conforto. Ele comporta-se razoavelmente e tem motor silencioso, mas não tenha pressa — sua aceleração de 0 a 96 km/h em 12,5 segundos é a mais letárgica e seus modos rudes são imperdoáveis. O Sportage mantém-se firme na identidade de SUV barato”.
Ciente do novo cenário, a Kia seguiu tais parâmetros na segunda geração, que estreava em janeiro de 2004 em paralelo ao Hyundai Tucson — a Kia fora adquirida pelo grupo compatriota em 1997. Com arquitetura derivada dos automóveis Kia Spectra e Hyundai Elantra, o Sportage estava bem maior (4,35 m de comprimento, 2,63 m entre eixos) e mais imponente no estilo. Sempre com cinco portas, trazia avanços em segurança como bolsas infláveis laterais e de cortina e controle eletrônico de estabilidade, enquanto teto solar e controlador de velocidade adicionavam conveniência.
Os motores transversais eram do próprio grupo: a gasolina de quatro cilindros, 2,0 litros e 16 válvulas (142 cv/18,8 m.kgf), V6 de 2,7 litros e 24 válvulas (173 cv/24,5 m.kgf) e turbodiesel de 2,0 litros (115 cv/26,5 m.kgf ou 143 cv/32 m.kgf), este associado a caixa manual de seis marchas. A tração básica passava a ser dianteira com opção por integral sob demanda, que enviava até 50% do torque ao eixo traseiro se necessário, sem intervenção do motorista. Atrás, a suspensão independente multibraço aprimorava conforto de marcha e estabilidade.
Na segunda geração, plataforma de automóvel, opção de motor V6 e tração integral sob demanda; o interior ganhava conforto; em azul, o modelo 2008
O V6 foi analisado pela Car and Driver: “Por US$ 4 mil a menos que um Escape XLT V6, o Kia ainda é um ótimo negócio. Tem ergonomia excelente e materiais internos de aspecto luxuoso. O rodar é notavelmente mais firme que o do Tucson, com pouca inclinação de carroceria, e a direção é precisa. O motor sente esforço pelo peso de 1.700 kg e, pouco refinado, faz muito ruído em alta rotação “. Retoques visuais eram aplicados em 2008 e novo sistema de áudio no ano seguinte. Na China ele manteve-se em linha ao lado do sucessor.
Nos anos 2000 a Kia fez sua filosofia de desenho avançar a passos largos com a contratação do alemão Peter Schreyer, ex-chefe de estilo da Audi. Essa evolução chegava em abril de 2010 ao terceiro Sportage, que assumia formas ousadas e com certa esportividade: linha de cintura alta, colunas traseiras largas sem janela adicional, lanternas posteriores horizontais. O interior oferecia ar-condicionado automático de duas zonas, banco do motorista com regulagem elétrica, chave presencial para acesso e partida do motor e câmera traseira para manobras.
Com plataforma compartilhada com o Hyundai IX35/Tucson, o Kia crescia mais um pouco (4,45 m com entre-eixos de 2,64 m), mas estava mais baixo, leve e aerodinâmico. A linha de motores era ampliada: a gasolina de 1,6 litro com injeção direta (135 cv/16,7 m.kgf), 2,0 litros com injeção multiponto (150 cv/19,5 m.kgf) ou direta (166 cv/20,1 m.kgf) e unidades turbodiesel de 1,7 litro (115 cv/26,5 m.kgf) e 2,0 litros (184 cv/40 m.kgf). Mais potente era o 2,0 a gasolina com turbo (261 cv/37,2 m.kgf), que sucedia ao V6. Como antes, nem todas as versões apareciam em cada mercado. Havia seis marchas nas caixas manual e automática e a direção adotava assistência elétrica.
Desenho mais ousado e esportivo marcava o terceiro Sportage; a versão de topo tinha motor turbo de 2,0 litros e 261 cv
A avaliação do Best Cars apontou evoluções com ressalvas: “Interior sem requinte, mas com bom desenho e espaço adequado. O modelo tem rodar bem silencioso e baixo nível de vibração. Apesar da eficiência da caixa automática, o Sportage não inspira esportividade no desempenho ou na estabilidade. Para um motor de 166 cv, esperava-se um pouco mais. O controle de estabilidade, que não equipa as primeiras versões, deveria ser de série”.
Em um processo de renovação rápida, sem paralelo à longa duração do primeiro modelo, o quarto Sportage era apresentado em setembro de 2015. Schreyer repetiu o tema de estilo do anterior, mas separou a grade dos faróis e deixou as lanternas traseiras esguias para um ar mais esportivo. Na Coreia ele se chamava KX5. Pouco mais amplo (4,48 e 2,67 m), seguia a plataforma do novo Tucson e oferecia bancos com ventilação, teto solar panorâmico, carregador sem fio para aparelhos e tampa traseira com acionamento elétrico, além de alerta para saída da faixa e frenagem automática em caso de risco de colisão.
Oferecia motores de 1,6 litro com turbo (177 cv/27 m.kgf), 2,0 litros (aspirado com 163 cv/20,4 m.kgf e turbo com 240 cv/35,7 m.kgf, este menos potente em nome de redução de consumo) e 2,4 litros (181 cv/24,1 m.kgf) a gasolina, além de opções turbodiesel 1,7 (141 cv/34,7 m.kgf) e 2,0 (185 cv/41 m.kgf). Transmissões manual e automática tinham seis marchas, mas havia uma automatizada de sete com dupla embreagem para o 1,6 e o 1,7. Como de hábito, a tração podia ser dianteira ou integral sob demanda.
Mais itens de conforto e segurança, caixa de dupla embreagem e estilo que evoluía o tema do anterior: o quarto modelo dessa série da Kia
“A estrutura está muito mais rígida, o que permitiu uma suspensão mais macia em pisos ásperos. Não é tão prazeroso de dirigir quanto o Mazda CX-5, mas os movimentos são bem controlados e a direção ficou mais precisa”, avaliou a Car and Driver. “Embora menos potente e 45 kg mais pesado que antes, ele acelerou de 0 a 96 km/h em 6,9 segundos, mais rápido que o modelo 2012. Apesar de a cabine permanecer utilitária, ganhou materiais mais ricos e bancos com maior apoio. Desempenho, refinamento e amenidades deixam esse Kia muito atraente”, concluiu.
Ao Brasil o Sportage chegou ainda na primeira geração, com o motor a gasolina mais potente e o 2,2 a diesel, e chegou a oferecer a versão Grand e o 2,0 turbodiesel. O segundo modelo ofereceu as unidades a gasolina de 2,0 e 2,7 litros, e o terceiro, apenas a 2,0 com versão flexível de 2012 em diante, motor que foi mantido na quarta geração. Ao se adaptar aos novos tempos, tem sido o modelo mais vendido da Kia em um mercado no qual os utilitários esporte são muito desejados.
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