Em parceria com marcas as mais diversas, a chinesa FAW produz
desde 1958 automóveis requintados para atender ao governo do país
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação
Pense em carro norte-americano de luxo, do tipo escolhido para os altos escalões do governo, e virão à mente as marcas Cadillac e Lincoln. Se for em um alemão, os tradicionais modelos da Mercedes-Benz têm presença garantida. Até a Rússia tem seu antigo símbolo de poder e ostentação, a linha de limusines ZIL/ZIS. E na China? A marca Hongqi, fundada em 1958, é a resposta certa quando se pensa em tradição de luxo para uso oficial no país asiático.
Primeiro fabricante chinês de carros de passageiros, a Hongqi surgiu em Changchun, na província de Jilin, no nordeste da China, como uma divisão da FAW (First Auto Works) para atender não ao público geral, mas apenas ao alto escalão do partido comunista, que detém o poder no país desde 1949. O nome significa no idioma local “bandeira vermelha”, um símbolo do comunismo que vinha devidamente aplicado a um ornamento no capô, enquanto a denominação da marca em letras manuscritas pelo presidente Mao Tsé-Tung aparecia na tampa do porta-malas.
O primeiro modelo, o CA72, foi lançado em agosto de 1958 como sedã de quatro portas e no mês seguinte como conversível — destinado a desfiles como o do Dia Nacional, função para a qual os passageiros de trás dispunham de uma barra de apoio. Embora fiel às linhas norte-americanas de meados da década, ele trazia detalhes típicos da China no estilo, como as aletas da grade dianteira inspiradas em um leque e as lanternas traseiras que remetiam a lanternas chinesas. As portas de trás, “suicidas”, abriam-se em sentido inverso às dianteiras.
O CA72, primeiro modelo da marca (acima e no alto), seguia linhas norte-americanas
e usava motor V8 da Chrysler; existiu também um conversível de quatro portas
O sedã media 5,73 metros de comprimento e 3,40 m de distância entre eixos e pesava cerca de 2.800 kg. Usava motor Chrysler V8 de 5,6 litros com potência de 217 cv e tração traseira — há quem garanta que a plataforma era a mesma do Chrysler Imperial 1955. No interior luxuoso, ambos os bancos eram inteiriços. Apenas 198 exemplares foram feitos até 1965.
Os carros oficiais traziam porta-bandeiras
nos para-lamas; o direito ostentava a
de eventual convidado estrangeiro a bordo
Uma evolução, o CA770, era apresentada em 1963 com desenho coerente aos padrões daquela década. Foi o Hongqi produzido por maior tempo, até 1980, período que abrangeu versões especiais como a limusine (mais longa e com três filas de bancos), a CA771 (30 centímetros mais curta, feita de 1967 em diante e fornecida a líderes militares das províncias chinesas), a blindada CA772 e a ainda menor CA773 (com 40 cm a menos que a original). O maior deles, a limusine, media 5,98 m de comprimento e 3,72 m entre eixos e pesava 2.730 kg.
O motor V8 herdado do CA72 podia levá-lo à máxima de 160 km/h e a alavanca de câmbio vinha na coluna de direção. Os carros oficiais traziam porta-bandeiras nos para-lamas dianteiros, sendo que o esquerdo carregava sempre a bandeira chinesa e o direito, no caso de transporte de convidado estrangeiro, a bandeira de seu país. À frente do painel revestido em madeira com velocímetro horizontal, o volante ostentava um emblema com um girassol dourado envolto por três bandeiras vermelhas, que simbolizavam a Construção do Socialismo, o Grande Salto Adiante e a Comuna do Povo, pilares das políticas de Mao.
O CA770 mantinha a mecânica, mas com visual renovado; a versão limusine foi
a mais comum e houve até uma série blindada que pesava quatro toneladas
Foram produzidas cerca de 1.600 unidades dessa série, sendo 847 limusines e apenas 15 da versão blindada CA772. Estas foram entregues entre 1969 e 1972 a autoridades chinesas do mais alto escalão, mas também presenteadas a Ho Chi Minh (presidente do Vietnã), Kim Il-sung (líder da Coreia do Norte) e o Rei Norodom Sihanouk do Camboja. Assim modificado, o carro pesava mais de quatro toneladas e usava o V8 da Chrysler ampliado para 8,0 litros e cerca de 300 cv.
Nos anos 80 a FAW via seus carros serem substituídos no uso governamental por modelos importados. Para recuperar seu espaço a empresa foi buscar parceiros no exterior, como a norte-americana Chrysler, que deixaria de produzir o sedã Dodge 600 em 1987 e venderia aos chineses seu ferramental. Os motores de quatro cilindros com 1,8, 2,2 e 2,5 litros usados nos carros K também passariam a ser fabricados pela marca asiática. Um protótipo do Hongqi CA750F, derivado do Dodge, chegou a ser construído.
Contudo, outros fabricantes interessaram-se na parceria com a FAW, como a General Motors, a Mitsubishi (que propôs a produção chinesa do Debonair) e a Volkswagen por meio da Audi. Um acordo com a marca alemã dos quatro anéis acabou sendo firmado e, em 1988, o Audi 100 começava a ser fabricado na China… com motor Chrysler 2,2. Embora tenham tirado dos planos a produção do Dodge 600, os germânicos não impediram que o motor norte-americano fosse aplicado a seu carro, da geração lançada na Europa em 1982.
A parceria com a Audi rendeu numerosas versões chinesas do 100, com frentes
diversas, motores Chrysler e Nissan e até um conversível de desfiles oficiais
Vendido ao público geral pela FAW-Volkswagen, o 100 deu origem ao Hongqi CA7200/CA7220, lançado em 1995. Oferecido também na versão EL1, alongada entre eixos em 25 cm, ele usava motores fornecidos pela Audi (de quatro cilindros e 1,8 litro, cinco cilindros e 2,2 litros e V6 de 2,4 litros) e o Chrysler 2,2 de apenas 91 cv — a insólita combinação de um subpotenciado motor de origem norte-americana em um carro projetado por alemães e reestilizado e produzido por chineses.
Um pacote visual esportivo, com defletores dianteiro e de porta-malas, saias laterais e rodas de alumínio, era oferecido em 1996 no CA7220H, que vinha ainda com bancos de couro e rádio/toca-CDs. Outra derivação, o CA7202 — também chamado de Shijixing ou Century Star —, aparecia em 2000 com motor V6 de 2,0 litros e 125 cv da Nissan. A versão CA7180 A4E, que usava um 1,8-litro da mesma marca, foi bastante usada como táxi. Foram feitos ainda um conversível de quatro portas alongado em 53 cm para desfiles oficiais, o CA7202 E3-L, e até o protótipo de uma inusitada picape de cabine dupla que podia receber cobertura na caçamba para se assemelhar a uma perua.
Em paralelo aos negócios com os alemães, a FAW firmava uma parceria com a Ford norte-americana, detentora da marca Lincoln. O primeiro resultado foi o CA7465 C8, derivado do Town Car de segunda geração, que recebeu uma frente típica dos antigos Hongqis e foi fabricado de 1995 a 1997. O Qijian CA7460, baseado no Town Car de terceira geração, chegava em 1998 com linhas mais atuais, motor V8 de 4,6 litros e 210 cv e câmbio automático de quatro marchas.
Derivado do Lincoln Town Car, o Hongqi Qijian CA7460 tinha quatro opções de
tamanho com adaptação feita na própria China, uma delas com 6,8 metros
Também para esse modelo foram criadas versões limusine, a L3 (alongada em 20 cm) e a L1, nada menos que um metro mais longa que a convencional. Com 6,48 m de comprimento e 3,99 m entre eixos, esta pesava 2.230 kg e vinha com televisor e telefone. A última a ser lançada, a L2 de 2003, media 1,35 m a mais que o carro original e trazia minibar e computador a bordo. Ao contrário do modelo básico, que a FAW montava a partir dos componentes importados dos EUA, as limusines eram alongadas na própria China.
A modernização da marca prosseguia em 2006, quando o Hongqi HQ3 aparecia com base no Toyota Crown Majesta — a FAW também tem uma associação com a marca japonesa. Com linhas e acabamento adequados ao gosto chinês, ele usava motores V6 de 3,0 litros e V8 de 4,3 litros e trazia avanços como controle eletrônico de estabilidade, auxílio à visão noturna, faróis com facho adaptativo e monitor que alertava para o risco de colisão.
Com base no carro-conceito HQD do Salão de Xangai de 2005, com estilo inspirado em modelos do passado e no Rolls-Royce Phantom, a Hongqi lançava em 2010 o CA7600L para uso oficial. A limusine de 6,40 m de comprimento e 3,80 m entre eixos pesava 2.720 kg com a blindagem de fábrica, tinha motor V12 de 6,0 litros e 408 cv, caixa automática de seis marchas e tração integral; a suspensão usava molas pneumáticas. Uma versão menor, a L5, aparecia em 2013 para venda ao público geral com 5,55 m de comprimento e 3,44 m entre eixos. Os passageiros de trás desfrutavam enorme espaço e monitores de vídeo e havia numerosas opções para o revestimento em couro e os apliques de madeira.
Com motor V12, o L5 (em cima) é o atual topo de linha da Hongqi, que oferece
também o sedã menor H7 (embaixo) e planeja a estreia do SUV (à direita)
Um novo Hongqi de menor porte, o H7, era apresentado em 2012 com a plataforma do HQ3 e linhas mais atuais. Estava disponível com motor turbo de 2,0 litros e 204 cv e um V6 de 3,0 litros e 231 cv. Outro conceito, o SUV, era um utilitário esporte de luxo mostrado no evento de Pequim de 2008 que deve ser colocado em produção ainda em 2014 com a plataforma do Toyota Land Cruiser.
Os tempos mudaram, a China cresceu e tornou-se o maior mercado de carros do mundo. Automóveis de luxo antes restritos aos membros do governo agora estão ao alcance de milhões de chineses, mas a Hongqi permanece um símbolo de requinte e ostentação no modo chinês de ver e fazer as coisas.
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