Símbolo de requinte no pós-guerra, o modelo com carrocerias
especiais ainda é usado por presidências como a do Brasil
Texto: Fabrício Samahá – Fotos: divulgação, exceto quando indicado
Charles Stewart Rolls era um aristocrata inglês, engenheiro mecânico, piloto e revendedor de carros importados. Frederick Henry Royce, de origem modesta, trabalhava com motores elétricos e inventara em 1904 o próprio automóvel com motor de 1,8 litro e dois cilindros. Quando Rolls conheceu o carro de Royce, convenceu-se de que aquele era “o homem que eu procurava havia anos” e tornou-se seu revendedor. Pouco depois, em 1906, a Rolls-Royce começava sua trajetória para ser reconhecida por muitos como construtora dos melhores carros do mundo.
O primeiro deles, o 40/50 HP Silver Ghost, surpreendia pelo motor silencioso — o nome “fantasma de prata” seria uma alusão à forma quase imperceptível com que ele se aproximava e, claro, à carroceria prateada. Na década de 1920 vinham o modelo 20, acessível para os padrões da marca, e o grande e sofisticado Phantom (outro nome para fantasma), com motor de seis cilindros e 7,7 litros para um peso de 2,9 toneladas.
Uma evolução do modelo 20 era lançada em 1938 como Wraith (espectro). Tinha motor de seis cilindros em linha e 4,3 litros, suspensão dianteira independente e uma fixação aprimorada do motor ao chassi que, segundo o material da empresa, fazia dele “provavelmente o mais silencioso Rolls-Royce produzido entre as guerras”. No ano seguinte, porém, a empresa cessava a fabricação de automóveis e voltava-se à produção de motores Merlin para uso aeronáutico na Segunda Guerra Mundial.
Depois da breve produção do Wraith de 1938, interrompida pela guerra, a Rolls-Royce
voltava em 1946 com o Silver Wraith, que “vestia” carrocerias de diversas empresas
Passado o conflito, a Rolls-Royce retomava atividades e apresentava em abril de 1946 o Silver Wraith, uma evolução do modelo pré-guerra. Com carrocerias construídas por empresas especializadas ou “encarroçadores”, dentro da tradição dos anos 20 e 30, ele oferecia numerosas opções: a Park Ward “vestia-o” como sedã de cinco lugares ou limusine de sete; a H. J. Mulliner, como Sedanca DeVille de duas portas ou limusine de quatro portas; a Hooper, como cupê conversível ou limusine; a James Young, como sedã ou limusine, ambos de quatro portas; a Freestone & Webb, como cupê, sedã ou limusine; e ainda se podia optar por trabalhos como os da Franay e os da Saoutchik. Em geral a distância entre eixos media 3,23 metros, o comprimento ficava ao redor de 5,20 m e o peso superava um pouco as duas toneladas.
“O Silver Wraith tem um elemento indefinível, uma delicadeza de comportamento que escapa da definição em palavras”, anunciou a Autocar
O motor de 4,3 litros e seis cilindros em linha era similar ao do antigo Wraith, mas as válvulas de escapamento agora vinham no bloco (as de admissão continuavam no cabeçote de alumínio, onde todas elas estavam no modelo pré-guerra), formando o chamado “cabeçote em F”. O aparente retrocesso técnico — válvulas no cabeçote foram tendência dali em diante — permitia o uso de válvulas maiores, para melhor “respiração” do motor, e aumento das galerias de água para aprimorar o arrefecimento. Sobre o mesmo tema, uma curiosidade era a grade do radiador com lâminas com controle termostático, que se abriam apenas quando o motor começava a se aquecer.
Embora a fábrica já tivesse o hábito de omitir a potência dos motores, que algumas vezes descreveria apenas como “suficiente”, estima-se que o do Silver Wraith desenvolvesse cerca de 125 cv a 3.750 rpm, transmitidos às rodas traseiras. O câmbio manual de quatro marchas (sem sincronização na primeira) tinha alavanca no assoalho nos primeiros carros com volante à direita, o padrão inglês, mas a alavanca no assoalho foi adotada nos modelos com direção à esquerda para exportação.
Algumas unidades receberam estilos ousados, como o Sedanca de Ville da Hooper e
o conversível da Saoutchik; o carro presidencial do Brasil é usado apenas em cerimônias
O chassi de aço ao qual vinha montada a carroceria (feita em aço ou alumínio, conforme a empresa) também trazia novidades em relação ao do Wraith, embora mantivesse a suspensão de braços sobrepostos com molas helicoidais na frente e o eixo rígido com feixe de molas semielípticas na traseira. Rodas em disco tomavam o lugar das raiadas, com pneus 6,50-17; os freios a tambor já contavam com assistência e o sistema elétrico era de 12 volts.
O Silver Wraith recebia um motor de maior cilindrada (4,6 litros) e 150 cv estimados em 1951, mesmo ano em que surgia a opção de distância entre eixos maior, de 3,38 m, com a qual o comprimento ficava em torno de 5,35 m. A média de peso já estava bem mais alta, 2.340 kg. O chassi longo teve tal aceitação entre os “encarroçadores” que se tornaria padrão já no ano seguinte — quando aparecia outra novidade, a caixa de câmbio automática General Motors de quatro marchas, de início restrita a versões de exportação. Direção assistida vinha apenas em 1956.
O requinte e a qualidade do modelo não passaram despercebidos pela revista inglesa Autocar, que assim o apresentou em 1949: “Em um mundo de valores monetários despedaçados e carros muito melhores, o Rolls-Royce ainda está sozinho. Talvez o pensamento geral mais marcante em considerar esta máquina suprema, hoje, é que ele tem um nome mais honrado como símbolo universal de qualidade do que a de qualquer produto manufaturado”.
Anos depois, a mesma revista tentava explicar: “Em comum a todos os modelos da marca, o Silver Wraith tem um elemento indefinível, uma delicadeza de comportamento que escapa da definição em palavras. É um carro para conhecedores do assunto”. Novo aumento de cilindrada — para 4,9 litros, que resultavam em 180 cv estimados — era efetuado em 1955, quando a Rolls-Royce já oferecia modelos mais modernos, deixando o “espectro” para um público reduzido adepto de carrocerias personalizadas.
Desenhos mais conservadores eram usados em limusines, como as feitas pelas
empresas Mulliner e Hooper; também acima, um Drophead Coupe da Franay
Até 1959, sua produção somou 1.783 unidades, das quais 1.144 com entre-eixos normal e 639 com o mais longo. Algumas delas ganharam fama especial por diferentes razões. Um Silver Wraith 1947 é o carro presidencial da Irlanda, um de 1952 serve a cerimônias especiais para a presidência do Brasil, um de 1958 pertence à presidência da Holanda e outro do mesmo ano serve à Rainha Margarida II da Dinamarca. Paulo I, rei da Grécia entre 1947 e 1954, também teve o seu — um modelo 1959 com teto transparente.
No caso do carro presidencial brasileiro, o uso está restrito a cerimônias como desfile de posses de presidentes da República, visitas de Estado e comemorações do Dia da Independência. A versão oficial é de que o carro foi doado por pelo empresário Assis Chateaubriand ao presidente Getúlio Vargas em 1952, sendo usado pela primeira vez em cerimônia no ano seguinte. Ele tem itens próprios para a função como plataformas no para-choque traseiro e nos estribos, para suportar o peso dos seguranças, e mastros para bandeiras nos para-lamas dianteiros.
Conta-se que o governo importou na época quatro unidades do Silver Wraith, dos quais apenas a limusine aberta permaneceu em uso oficial. Uma limusine fechada foi usada pela presidência e mais tarde entregue à família de Vargas; hoje está em mãos de um colecionador em São Paulo. Vieram ainda dois sedãs Touring Limousine de chassi curto (um preto e um cinza) que não tiveram uso oficial, foram vendidos e permanecem com particulares.
Extravagante, o carro feito para um milionário tinha teto de plástico transparente;
o nome Silver Wraith voltava a ser usado em um Silver Shadow mais longo
Outras versões famosas do Silver Wraith foram as encomendadas pelo milionário armênio Nubar Gulbenkian, que fez fortuna com o petróleo e se tornou celebridade na Inglaterra no pós-guerra. De gostos extravagantes, Gulbenkian mandou fazer em 1947 um modelo com carroceria Hooper de linhas um tanto controversas. Nove anos mais tarde, recebeu do mesmo “encarroçador” um sedã de quatro portas de entre-eixos longo e motor de 4,9 litros para seu uso na Costa Azul, no litoral francês. O item mais curioso era o teto de plástico (Perspex) transparente, com um tela interna de tecido com controle elétrico. O carro de 1956 foi leiloado em 2008 pela empresa Bonhams.
As fotos mostram ainda um modelo 1953 com carroceria Touring Limousine da Mulliner e uma Empress Limousine de 1956 “vestida” pela Hooper, ambos os carros leiloados em 2010 pela RM Auctions.
O nome de um dos mais famosos Rolls-Royces foi aproveitado entre 1977 e 1980 no Silver Wraith II, a versão de maior entre-eixos do sedã Silver Shadow II. Além das dimensões, o carro se diferenciava pelo teto revestido em vinil, vidro traseiro menor e, em algumas unidades, uma divisória com comando elétrico entre o posto do motorista e o espaço dos passageiros. Como no Silver Shadow, o motor era um V8 de 6,75 litros com câmbio automático de série. No Salão de Genebra de 2013 a marca lançava o Wraith, um cupê superluxuoso com motor V12 de 6,6 litros, dois turbos e 624 cv.
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